Carboidrato no banco do réu

Hoje ele é rechaçado das dietas para emagrecimento e visto como vilão, mas merece mesmo o título?

Chloé Pinheiro Colaboração para UOL VivaBem Arte/UOL

Nas últimas décadas, o carboidrato passou de parte fundamental da alimentação a acusado de financiar a epidemia global de obesidade e sobrepeso. Se antes o excesso de gordura era considerado a maior ameaça à saúde, hoje dietas que reduzem nossa principal fonte de energia, como a dieta paleolítica e a low carb, fazem mais sucesso.

Mas afinal, quem é culpado nessa história? O assunto rende pano pra manga. Uma grande revisão recente comandada pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, analisou mais de 100 estudos sobre o tema e concluiu que não existe uma única medida para todos os humanos. E que o problema está mais na qualidade do que na quantidade do que comemos.

No caso dos carboidratos, a preocupação é com o grupo dos refinados. "Nosso consumo exagerado deles é em grande parte responsável pela obesidade que está se espalhando pelo mundo", comenta Jeremy Furtado, cientista sênior do Departamento de Nutrição da Escola de Saúde Pública de Harvard.

Conversamos com uma série de especialistas para entender a contribuição real dos carboidratos para o ganho de peso, sua importância para a saúde humana e a diferença entre os tipos que comemos desse nutriente tão abundante quanto polêmico.

O problema da quantidade

Há dezenas de milhares de anos, os carboidratos que comíamos eram basicamente provenientes das frutas e legumes. Com o advento da agricultura, outra fonte importante do nutriente entrou de vez na dieta, os cereais - arroz, milho e companhia. Essa mudança foi fundamental para a evolução humana.

O carboidrato é o principal combustível para o cérebro, e, quando ele passou a existir em maior quantidade na dieta humana, as sinapses, conexões entre os neurônios, aconteceram com mais frequência e de maneira mais eficiente. Tanto que, há um milhão de anos, nossos genes evoluíram para digerir mais facilmente o amido da batata e de outros tubérculos.

Só que, a partir do século 20, com a industrialização, nosso consumo desse nutriente disparou, e novos ingredientes que tem carboidratos como base surgiram, como os xaropes de milho e de frutose, farinha branca enriquecida e outros açúcares --itens hoje onipresentes na alimentação ocidental.

O açúcar simples, de mesa, passou a ser reconhecido como o representante mais "perigoso" dos carboidratos. Só que pães, massas, sucos de fruta e tantos outros passaram longe aos olhos do crivo popular e da ciência.

Receitas assadas feitas a partir da farinha de trigo branca foram os pináculos da nutrição moderna, com o pão branco usando a coroa. Areado e leve, ele sempre foi o favorito da América, presente em todas as mesas e em quase todas as refeições"

Jeremy Furtado

A qualidade importa

Durante muito tempo, se dividiu os carboidratos em dois grupos: simples e complexos. Os simples são as moléculas formadas por apenas uma ou duas unidades de sacarídeos, como os monossacarídeos (glicose, frutose e galactose do leite) e dissacarídeos (sacarose, lactose, maltose). Esse tipo é rapidamente absorvido pelo organismo e logo convertido em energia para o corpo.

Já os complexos são os polissacarídeos, como o amido da batata, por exemplo, formados por milhares de unidades de glicose, por isso são digeridos mais lentamente. As fibras também são consideradas carboidratos complexos. Por conta de seu tamanho, a tendência sempre foi assumir que eles são superiores por conta de sua estrutura, que dificulta a digestão.

Só que, na verdade, os amidos são facilmente convertidos em açúcares simples por enzimas presentes na boca e no estômago, que começaram a ser produzidas por nós há um milhão de anos --justamente como evolução genética para processarmos melhor os carboidratos tão necessários para o corpo. Se são ingeridos em grande quantidade, portanto, também podem levar ao ganho de peso.

Por isso, os pesquisadores preferem usar a classificação de refinado ou integral para determinar a qualidade do carboidrato. Os carboidratos refinados são isolados de outros materiais que costumam acompanhá-lo: as fibras das plantas, água, proteínas e gorduras. Assim, acabam absorvidos como os carboidratos simples mesmo que sua origem seja complexa. Já os integrais são os mais in natura possível, encontrados em cereais e vegetais.

A exceção que vem dos índios

Numa alimentação equilibrada, entre 45 e 65% das calorias diárias deve vir dos carboidratos. Acima disso, há o risco de ganho de peso e os problemas associados a ele. Mas a questão da qualidade é tão importante que essa porcentagem pode nem fazer diferença se o consumo for do tipo certo de carboidrato.

O povo indígena tsimane, da Bolívia, é a prova viva disso. Estudados por pesquisadores norte-americanos, em 2017 eles foram eleitos donos dos corações mais saudáveis do mundo. Aos 45 anos, quase nenhum dos mais de 700 indígenas estudados tinha depósitos de cálcio nas artérias --um indício de entupimento que leva ao infarto e outros problemas.

E 72% do que eles comem todos os dias é puro carboidrato. Ou seja, um achado que contesta a suposição de que carboidratos não são saudáveis. O que explica isso? Provavelmente as fontes do nutriente e o alto gasto energético nas atividades do dia a dia. Os homens da etnia dão 17 mil passos por dia e as mulheres 16 mil. O recomendado para ter uma vida saudável é dar no mínimo 10 mil passos diários.

O consumo de carboidrato no fim é uma questão de equilíbrio. Se você se exercita e faz boas escolhas, pode consumir. Por exemplo, o fato do açúcar de um refrigerante ser liberado rapidamente na corrente sanguínea não seria um problema se você fosse correr logo em seguida --ou caçar seu almoço, no caso dos tsimane. 

Açúcar x Gordura

O exagero no consumo de carboidratos se deveu, principalmente, à demonização da gordura, outra fonte de energia importante para o corpo, que começou a ser mal vista no final da década de 1960. No entanto, estudos feitos nos últimos anos mostraram que ela não faz tão mal assim, desde que sejam privilegiados os tipos bons, como os lipídios das oleaginosas e o ômega 3 do salmão e da sardinha.

Na verdade, as principais descobertas da ciência apontam para um caminho: é inútil focar em apenas um nutriente se o objetivo é ser mais saudável, emagrecer e prevenir doenças. O que deve mudar é nossa relação com a comida, o que passa necessariamente por enfrentar o lobby da indústria alimentícia, que intervém no assunto desde 1960, nos Estados Unidos, quando ajudou a eleger a gordura como vilã.

Para os especialistas, nós comemos muito dos dois grupos: tanto as gorduras saturadas e hidrogenadas quanto os carboidratos refinados. E nem sempre cortar um dos dois resolverá o problema do peso --até mesmo porque, além da alimentação, nosso índice de sedentarismo é bem alto. Fora que cada organismo metaboliza os nutrientes de um jeito, assim, pode ser mais fácil reduzir um do que o outro.

Para quem tem resistência à insulina, um quadro que antecede o diabetes tipo 2, reduzir os carboidratos pode ser melhor, enquanto outras pessoas têm uma preferência natural por doces e ficam melhor sem gordura, e por aí vai. No fim das contas, essa é uma decisão que deve ser tomada com a orientação de um profissional de saúde.

No Brasil, hoje se discute uma rotulagem que alerte os consumidores sobre os altos níveis de açúcar e gordura no rótulo dos alimentos. Enquanto isso, nas regiões conhecidas como "desertos alimentares", onde o acesso a alimentos frescos é escasso, como certos lugares do Nordeste e no Norte, vendedores porta a porta de grandes fabricantes comercializam kits de ultraprocessados como biscoitos, bolachas e macarrão instantâneo. "Quando você oferece industrializados a preços acessíveis na porta de uma casa em uma região vulnerável, tira a possibilidade de escolha do consumidor", aponta Vanille Valério Barbosa Pessoa, do Conselho Federal de Nutrição.

Di Vasca/ UOL VivaBem Di Vasca/ UOL VivaBem

A importância do carboidrato

Nosso corpo foi programado para ele. O cérebro, por exemplo, depende da glicose para funcionar e não consegue armazená-la. Por isso, mesmo em uma dieta com restrição de carboidratos, é impossível excluí-los completamente do prato. Essa dependência fez com que os humanos desenvolvessem uma atração forte e irresistível por fontes de açúcares.

Outro papel importante do nutriente é a produção de serotonina e dopamina, neurotransmissores que integram o sistema de recompensa e comandam o bem-estar, humor e sono. Mas vá com calma: quando esse sistema é ativado com muita frequência, o cérebro "perde a mão" e passa a ativar a vontade de comer mais mesmo que já estejamos satisfeitos.

Fora da mente, o carboidrato colabora para a manutenção do metabolismo do corpo, pois é o nosso melhor fornecedor de energia. Se ele falta, passamos a usar o glicogênio, espécie de glicose armazenada nos músculos, mas que é uma reserva limitada. Depois, o corpo começa a usar a gordura, mas isso leva a sintomas iniciais como irritabilidade, cansaço e fraqueza.

Por último, as fibras são as principais responsáveis pelo bom funcionamento do intestino. Além de melhorar a produção e a movimentação das fezes, elas são o alimento das bactérias do bem que habitam a nossa microbiota intestinal. Hoje se sabe que esses micro-organismos são essenciais para a manutenção da imunidade e da saúde em longo prazo.

O que acontece quando ficamos sem carboidrato?

  • Primeiras horas

    Quando o consumo de carboidratos cai drasticamente, os níveis de glicose em circulação diminuem e em cerca de 12 horas o corpo começa a fabricar sua própria glicose, a partir das proteínas dos músculos, que é mais fácil de ser utilizada do que a gordura.

  • Entre um e dois dias

    O consumo de gordura para fabricação de glicose no fígado aumenta. Junto com a glicose fabricada desta maneira, o corpo libera também corpos cetônicos, que abastecem coração, músculos e cérebro. O estado é chamado de cetose (e é a base da dieta cetogênica).

  • De três dias a uma semana

    Por volta do terceiro dia, o cérebro e o organismo começam a se ressentir da falta de carboidratos, o corpo até se adapta, mas não fica muito feliz com a troca. Por conta disso, pode haver fraqueza, cansaço, mau humor, picos de fome e a sensação de gripe. As coisas só se estabilizam depois de uma semana.

  • Mais tempo ainda

    Depois de 4 semanas, há risco de deficiências nutricionais importantes e, como o cérebro sente que a sobrevivência está em risco por conta da provável perda de peso, o metabolismo pode desacelerar para poupar energia, o que prejudica o emagrecimento. A recomendação é voltar a ingerir carboidratos, mas com moderação

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