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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Crianças separadas dos pais podem ter danos psicológicos irreversíveis

Em protesto nos EUA, criança chora enquanto fala sobre ser separada de seu pai. O estresse causado por isso pode gerar ansiedade e até aumentar risco de câncer   - Ross D. Franklin/AP Photo
Em protesto nos EUA, criança chora enquanto fala sobre ser separada de seu pai. O estresse causado por isso pode gerar ansiedade e até aumentar risco de câncer Imagem: Ross D. Franklin/AP Photo

Tatiana Pronin

Colaboração para o VivaBem

26/06/2018 04h00

Se você, na infância, chegou a perder seus pais de vista por alguns minutos num lugar lotado, com certeza tem ideia do desespero que ser arrancado deles pode causar para uma criança. Agora imagine que, depois disso, ela ainda seja levada para um lugar estranho, com pessoas desconhecidas. Um estresse como esse pode ser tão tóxico para o cérebro em desenvolvimento, que as consequências vão além do sofrimento psicológico e podem afetar a vida da pessoa para sempre.

Entidades médicas norte-americanas têm se empenhado em divulgar esse assunto desde que mais de 2.000 crianças foram separadas de suas famílias na fronteira entre México e Estados Unidos, nas últimas semanas, por causa da política de “tolerância zero” para imigrantes do governo de Donald Trump. Ainda que o presidente tenha recuado na decisão de separar pais e filhos, a situação ainda não foi resolvida na prática.

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O médico Jack Shonkoff, diretor do Centro de Desenvolvimento Infantil da Universidade Harvard (EUA), diz que que quanto maior for a demora em retornar essas crianças para suas famílias, piores serão as consequências em longo prazo. “Níveis altos e persistentes de estresse podem alterar a arquitetura do cérebro em desenvolvimento e outros sistemas biológicos, com vários impactos negativos para o aprendizado e comportamento, bem como para a saúde física e mental ao longo da vida”, afirma.

“O que torna essa situação única é que não é algo temporário; elas não apenas foram separadas dos pais, mas estão em um novo país, com pessoas diferentes, e não se sabe quando ficarão bem de novo”, comenta a psiquiatra infantil e forense Sarah Vinson, integrante do comitê de comunicação da Associação Americana de Psiquiatria.

Vinson acrescenta que é preciso considerar não apenas o estresse biológico a que esses meninos e meninas estão sendo submetidos, mas também os aspectos psicológicos envolvidos na questão, uma vez que o sofrimento é causado justamente pelas pessoas para quem os pais desses imigrantes vieram pedir ajuda. “São indivíduos que vão enxergar o mundo como uma ameaça”, observa.

Positivo, tolerável ou tóxico

Ativação prolongada dos hormônios do estresse na infância pode diminuir conexões no cérebro - iStock - iStock
O estresse tóxico afeta o desenvolvimento do cérebro da criança e pode afetar outros órgãos
Imagem: iStock
Toda criança é exposta a adversidades e responder a esses eventos é algo normal e até necessário para o desenvolvimento saudável, como ficar nervoso ao tomar uma injeção ou mudar de escola. É o que se chama de estresse positivo: o organismo libera hormônios como adrenalina e cortisol, o coração se acelera e a pressão aumenta, mas o equilíbrio é logo recuperado com um abraço do cuidador ou uma brincadeira.

Situações mais graves, como a perda de um parente, podem trazer um estresse mais duradouro, porém tolerável se a criança tiver o suporte de um adulto. Nesses casos, o organismo se recupera dos efeitos danosos da descarga de adrenalina. Já adversidades muito intensas e prolongadas, como situações repetidas de abuso ou privação, geram uma resposta capaz de comprometer o desenvolvimento do cérebro e afetar outros órgãos. É o que os especialistas chamam estresse tóxico

Embora algumas pessoas acreditem que traumas dos primeiros anos de vida tenham menor impacto porque a criança tende a esquecer os acontecimentos, a ciência comprova que é exatamente o oposto. Quanto mais novo o indivíduo, maior sua dependência da ajuda externa de pais e cuidadores para voltar ao estado de equilíbrio em uma situação de estresse.

Cérebro modificado

Autismo, criança triste, depressão infantil - iStock - iStock
O trauma gerado em adversidades intensas impede que a criança desenvolva laços afetivos
Imagem: iStock
Nos primeiros anos de vida, mais de 1 milhão de conexões entre os neurônios são criadas a cada segundo para levar informações do cérebro para o resto do corpo e vice-versa. A exposição prolongada aos hormônios do estresse inibe esse processo. Assim, não só novos neurônios, como novas conexões deixam de ser formadas, o que tem um impacto profundo na arquitetura do cérebro e pode resultar em déficits significativos no aprendizado e na regulação emocional.

Esses prejuízos já foram bem documentados ao longo de décadas de pesquisas científicas. Um dos trabalhos mais famosos envolveu crianças institucionalizadas na Romênia durante o regime do comunista Nicolae Ceausescu, que terminou em 1989. Uma equipe liderada pelo neurocientista e professor de pediatria Charles Nelson, de Harvard, examinou de perto as consequências do abandono. “O que ele encontrou foi uma espécie de atrofiamento em partes do cérebro envolvidas no aprendizado e no autocontrole”, comenta Eduardo Marino, diretor de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, especializada em primeira infância.

Trauma e ansiedade

Em casos de exposição contínua a uma adversidade, um indivíduo pode perder a capacidade de “fechar a válvula” e voltar ao estado de equilíbrio. A consequência direta pode ser a ansiedade e o estresse pós-traumático. Nesse último caso, a pessoa revive com frequência as situações difíceis que enfrentou, e com a mesma intensidade. Outra condição comum em indivíduos que sofreram abuso ou violência na infância é o transtorno do apego reativo, que impede o desenvolvimento de laços afetivos. Se você tenta abraçar uma criança com esse diagnóstico, ela pode reagir com agressividade.

Outras doenças

“O estresse tóxico deixa a criança mais sujeita a problemas psicológicos e de aprendizado na escola, e também a infecções e alergias”, conta o pediatra Márcio Leyser, professor associado da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, e integrante do departamento de pediatria do desenvolvimento e comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria.

Em longo prazo, esses indivíduos passam a ter maior propensão a doenças crônicas como câncer, infarto e derrame, segundo Leyser. Um dos trabalhos científicos que tornou-se referência em estresse tóxico é o Adverse Childhood Experiences (Experiências Adversas na Infância), realizado em San Diego, na Califórnia, e que envolveu mais de 17 mil adultos.

Os pesquisadores do grupo Kaiser Permanente e do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) descobriram que 63% das pessoas havia enfrentado pelo menos uma situação de risco na infância, como abuso, negligência, pais com transtornos mentais ou encarcerados. Uma parcela considerável, de 12%, tinha vivenciado quatro ou mais fatores de risco ao mesmo tempo, e apresentava um risco diversas vezes maior a ter doenças como depressão, alcoolismo, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), doença isquêmica do coração e infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).

Realidade brasileira

Em países com alto nível de violência, como o Brasil, é fundamental que os médicos estejam preparados para identificar essas situações de risco precocemente, a fim de evitar impactos futuros na saúde física e mental dessas pessoas e até problemas sociais. No ano passado, a Sociedade Brasileira de Pediatria divulgou um manual para orientar os profissionais sobre como lidar com o estresse tóxico. “Como coordenador da saúde da criança, o pediatra tem a função de avaliar e encaminhar a criança para o grupo interdisciplinar, que pode envolver psicólogo, psiquiatra, pedagogo e nutricionista, entre outros, afirma Leyser.

Eduardo Marino lembra que a situação nos Estados Unidos é inaceitável, mas que muitos imigrantes também passam por adversidades na América do Sul, e nesse caso a mudança é para países com poucos recursos. É o caso dos venezuelanos que têm migrado para cidades brasileiras. “É muito comum que a mãe venha e o pai fique, e as condições insalubres nos abrigos também gera muito estresse”, avalia o diretor, que acompanha um projeto implementado em Roraima.

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