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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Como um médico percebeu que precisava dar atenção às emoções dos pacientes

Um estudante de medicina mudou seu jeito de ser por causa de um paciente que sorria o tempo todo - Brian Stauffer/The New York Times
Um estudante de medicina mudou seu jeito de ser por causa de um paciente que sorria o tempo todo Imagem: Brian Stauffer/The New York Times

Abdul-Kareem Ahmed*

Do New York Times

24/05/2018 16h43

"Pai, não se mexa." Enquanto entrávamos no quarto do hospital naquela manhã, a filha do nosso paciente tentava barbeá-lo. Ele estava de cama por causa da operação e uma barba rala despontava.

Uma semana antes, a esposa o trouxera ao pronto-socorro. Ele estava com comportamento estranho, resmungando frases sem sentido e cambaleando pela casa. Um homem de 62 anos com sintomas neurológicos novos e profundos. Uma ressonância magnética do cérebro parecia redundante, mas confirmou o diagnóstico: um tumor maligno de quatro centímetros estava invadindo o córtex direito frontal, a sede da sua personalidade, onde o "pai" vivia.

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Eu me sinto atraído pelo cérebro humano, sua natureza implacável e multiforme. Bastam cinco minutos sem oxigênio e o cérebro perde a função. O córtex occipital processa a informação visual e nos permite ver rostos, árvores, estrelas. Entretanto, em uma criança pequena que fica cega, esse mesmo córtex pode ser adaptado para funções totalmente distintas, como processamento da linguagem. Astrônomos primitivos procuravam respostas nos céus, mas no cérebro humano, uma bola de gordura de 1.300 gramas, existem mistérios suficientes e o potencial para ter satisfeito Galileu, Kepler e Brahe.

E assim eu me encontro, no que já se tornou uma aventura de quatro anos na direção de uma carreira em neurocirurgia, ajudando a cuidar deste paciente. Eu fazia residência em um hospital longe de casa durante aquele mês. Era minha primeira semana de trabalho.

A residente chefe e eu estávamos ao redor da cama com nossas roupas médicas azuis e jaleco branco e o observamos sorrir. A filha olhou para mim, o único outro homem no quarto, e fez uma pausa, com o aparelho de barbear na mão. "Quer ajuda?", eu ofereci. "Ah, você ajudaria?", ela disse, parecendo aliviada. Ela rapidamente me entregou uma tigela de espuma com água quente e o aparelho. Eu sorri para mim mesmo e comecei a trabalhar, fazendo a barba. Era improvisado, mas familiar. Os ângulos desafiadores, cortar contra o pelo aqui, a favor ali, e o lábio superior, a pior parte. Os primeiros cirurgiões europeus eram barbeiros; que homenagem.

Sequei seu rosto com uma tolha. A filha me agradeceu. Mesmo com um tumor cerebral e os exames obrigatórios, testes e tratamentos que ocorrem em um hospital, a rotina diária continua. Ele precisava se barbear porque sempre se barbeou.

No corredor, alcancei a residente. "Ele está sempre sorrindo", eu disse. "Por que será?", ela perguntou, intencionalmente. Eu tive um palpite antes, mas agora era óbvio. Ele estava sorrindo porque não tinha escolha. O tumor, ou talvez a cirurgia efetuada para removê-lo, lhe roubara a expressão. Ele pode sentir desespero, euforia, raiva ou medo, mas agora só era capaz de sorrir. Parecia um tanto cruel.

Visitamos o paciente mais tarde naquele dia, agora acompanhados pelo neurocirurgião. O paciente se recusava a comer nos últimos dias, e os resultados dos exames desmentiam a face sorridente: níveis baixos de potássio e albumina, sugerindo inanição.

O que ele estava sentindo agora? E como eu poderia saber? Com toda probabilidade, eu presumi, ele estava com depressão severa. Talvez estivesse escolhendo ficar mudo.

O neurocirurgião pediu que ele comesse. O paciente apenas sorria. Ele se recusava a abrir a boca, mesmo com diversas tentativas de alimentá-lo. O neurocirurgião fez um sinal com a cabeça para a residente chefe, que saiu rapidamente. Eu a segui.

Ela fora buscar um tubo nasogástrico, um aparelho plástico fino que poderíamos passar pela narina e a garganta até chegar ao estômago. O paciente precisava de nutrição para se recuperar. Alimentá-lo pelo tubo era a melhor opção para mantê-lo vivo. Eu me ofereci para inserir o aparelho.

Quando voltamos ao quarto, explicamos a ele e à família a necessidade do tubo. Falamos que era muito melhor do que colocar um tubo no estômago por via cirúrgica. Ele balançou a cabeça como se concordasse, sorrindo.

Eu tentei colocar a ponta do tubo em sua narina, mas ele ofereceu resistência. O paciente usou as mãos para me afastar. A residente segurou seu braço esquerdo e eu segurei o direito. Se não conseguíssemos inserir o tubo, ele sofreria mais, acreditávamos.

Tentei novamente, mas ele era forte, girando o pescoço e evitando a ponta. Nossos olhos se encontraram. Eu me perguntei o que ele via. Será que enxergava a pessoa que ganhara sua confiança mais cedo pela manhã? Será que me considerava um traidor?

Com uma última tentativa, o tubo entrou pela narina e desceu pela garganta. Rapidamente, enfiei até o estômago e a grudei para ficar firme. Nós prendemos seus braços com as correias penduradas nos leitos hospitalares para tais situações. Acreditávamos que, se tivesse a chance, ele arrancaria o tubo.

Enquanto eu saía pela última vez naquele dia, tentei me despedir. Sua expressão sorridente era como a de sempre, mas senti que era encarado de outra forma desta vez. Eu também me despedi da esposa e da filha. Elas estavam perturbadas, mas, mesmo assim, agradecidas diante das circunstâncias.

E os dias se passaram. Soube que o paciente fora levado a outra ala para convalescer. Com outras cirurgias e atendendo outros pacientes, o tempo era limitado. Eu passava pela ala toda noite antes de ir para casa, esperando encontrá-lo.

Uma noite, eu achei-o dormindo e quis acordá-lo. Eu podia ver os ombros debaixo do cobertor, o rosto voltado para a janela.

Soube mais tarde que ele tivera alta, e eu não voltaria a vê-lo. Contudo, seu caso me faz refletir sobre o encontro com o paciente. Em uma ou duas consultas, os médicos fazem um corte transversal de uma vida intricada, chegam a um diagnóstico, oferecem um tratamento. Para esse paciente, o objetivo era colocar o tubo, cuidar de seu corpo. Entretanto, eu pouco fiz para cuidar de seus sentimentos ou de sua provável depressão. As histórias dos pacientes, suas circunstâncias, suas vontades nem sempre estão de acordo com nossos planos enquanto curadores. Tenho que reconhecer mais isso. Preciso ver.

Gosto de pensar que ele recuperou o apetite pela vida. Preciso acreditar nisso.

*Abdul-Kareem Ahmed frequenta a faculdade de medicina da Universidade Brown, nos Estados Unidos, e vai começar a residência em neurocirurgia na Universidade de Maryland nos próximos meses.

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