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'A circuncisão levou meu filho ao suicídio'

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Caroline Lowbridge

18/04/2019 12h37

"Saiba que eu fui em paz e agora estou em paz, o que era impossível depois desta mutilação. Eu morri em 2015, não foi agora."

Lesley Roberts ficou em choque ao ler o e-mail de despedida do filho, Alex Hardy.

A mensagem foi programada para ser enviada no dia 25 de novembro de 2017, doze horas após ele ter cometido suicídio.

Mas, pouco antes de o e-mail chegar, Lesley abriu a porta de casa e deu de cara com um policial, avisando que seu filho estava morto.

Alex era um jovem de 23 anos, inteligente e popular, sem histórico de doenças mentais. E Lesley não conseguia entender por que ele decidiu tirar a própria vida.

O e-mail explicava que ele tinha feito uma circuncisão - remoção cirúrgica do prepúcio (camada de pele que cobre a cabeça do pênis) - dois anos antes.

E classificava o procedimento como uma "mutilação genital masculina".

Ele nunca mencionou isso para a família ou os amigos enquanto estava vivo. Lesley não sabia sequer que o filho havia sido circuncidado.

Nos meses seguintes, ela tentou obter mais informações sobre o procedimento na tentativa de entender por que isso mexeu tanto com Alex e por que ele achava que se matar era sua única opção.

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Imagem: Arquivo pessoal

Amor em casa

Alex era o mais velho dos três filhos de Lesley - e foi muito esperado, sendo concebido após um tratamento de fertilidade.

Lesley costuma dizer que seus "sonhos se tornaram realidade" quando virou mãe em julho de 1994.

Segundo ela, ele se dava muito bem com os irmãos mais novos - Thomas e James. A parede da casa dela em Cheshire, na Inglaterra, é repleta de fotos do trio.

Alex era bom aluno e se destacava nas aulas de inglês, tanto que sua antiga escola criou o prêmio Alex Hardy Creative Writing em sua memória.

Foi durante um passeio da escola para esquiar no Canadá, aos 14 anos, que Alex se encantou pelo país. Ele gostava de esquiar quando era criança, e a viagem reacendeu essa paixão.

Ao completar 18 anos, ele decidiu adiar a entrada na universidade e ir morar no Canadá.

Quando faleceu, Alex estava morando havia cinco anos no país.

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Imagem: Aruqivo pessoal

Início do tormento

Lesley visitou o filho várias vezes, tanto sozinha quanto acompanhada dos irmãos dele e do padrasto. Eles eram uma família unida, mas Alex jamais contou a nenhum deles que estava sofrendo em silêncio.

"Eu tinha um problema de estreitamento do prepúcio", escreveu ele em seu último e-mail, "mas desde o fim da adolescência, isso gerava problemas na cama, pois significava que meu prepúcio não se retraía sobre a glande como deveria, o que causou alguns momentos constrangedores."

Em 2015, ainda em silêncio, Alex consultou um médico no Canadá, que receitou uma pomada com esteroides para alongar o prepúcio. Mas, algumas semanas depois, ele voltou ao médico porque achava que o tratamento não estava funcionando.

O que Alex tinha era fimose - dificuldade ou impossibilidade de retrair o prepúcio, impedindo a exposição da glande. Essa aderência é perfeitamente normal nos primeiros anos de vida. Mas, à medida que os meninos crescem, o prepúcio começa geralmente a se soltar da cabeça do pênis.

A fimose nem sempre causa problemas, mas pode provocar dificuldade para urinar e dor durante o ato sexual.

Na Inglaterra, o sistema público de saúde (NHS, na sigla em inglês) recomenda aplicação de esteroides tópicos e técnicas de alongamento - a circuncisão é o último recurso.

No Canadá, onde o procedimento é mais comum, Alex foi encaminhado a um urologista.

"Ele sugeriu imediatamente a circuncisão", escreveu Alex. "Eu perguntei sobre o alongamento e ele mentiu descaradamente, dizendo que não funcionaria no meu caso."

"Eu estava confiando principalmente no fato de que ele era o especialista e que sabia mais sobre o assunto, então, mesmo com o pé atrás, aceitei."

Investigação sobre o procedimento

Lesley encontrou algumas avaliações na internet sobre o urologista de Alex, que a fizeram questionar sua competência. Uma paciente contou que tinha sido incapaz de trabalhar desde que foi operada por ele em decorrência de problemas renais, e que ele "destruiu" sua qualidade de vida.

"Sou mãe de três crianças pequenas que estão todos os dias com medo, achando que eu vou morrer, porque me veem sentindo muita dor", escreveu ela.

"Dá para ver que ele diagnosticou mal as pessoas, fez cirurgias malsucedidas e arruinou algumas vidas", afirmava outro comentário. "Ele é perigosamente incompetente."

Outro alertava: "Deixaram um instrumento cirúrgico na minha bexiga, mas só fui notificado três meses depois. Fuja antes que você se machuque!"

Lesley ficou "horrorizada" com as críticas e solicitou a abertura de uma investigação contra o urologista. Mas foi informada que já havia uma investigação em andamento.

O Conselho de Médicos e Cirurgiões de British Columbia afirmou à BBC que "não pode revelar a existência de uma reclamação contra um médico, e só poderá fazer isso se a queixa resultar em uma punição formal".

Infelizmente, Alex não foi capaz de pesquisar sobre o urologista - ou a circuncisão - de forma adequada na época porque seu laptop estava quebrado.

Ele tentou pesquisar sobre o assunto em um computador público, mas se sentiu desconfortável, e também achou que era um assunto "muito tabu" para discutir com os amigos.

Alex agendou, então, o que ele acreditava ser um procedimento simples e fez a cirurgia em 2015, aos 21 anos.

"Ficou claro que o que acabara de acontecer tinha sido uma catástrofe", escreveu Alex para a mãe.

Ele anexou ao e-mail uma declaração pública em que explicou, em riqueza de detalhes, os problemas físicos que teve após ser circuncidado.

Na mensagem, descreveu sentir uma estimulação constante da cabeça do pênis, que não estava mais protegida pelo prepúcio.

"Essas sensações sempre presentes estimuladas pela fricção de roupas são uma tortura por si só; elas não diminuíram/normalizaram após anos de exposição (da glande)", escreveu.

"Imagine o que aconteceria com o globo ocular se a pálpebra fosse amputada?"

"Ele sentia muita dor porque as atividades físicas normais machucavam", diz Lesley. "Ele era um grande esquiador e snowboarder, então você pode imaginar a dor que ele estava sentindo."

Queimação e coceira

O cirurgião Trevor Dorkin, que é membro da Associação Britânica de Cirurgiões Especializados em Urologia, explica que a cabeça do pênis costuma ficar mais sensível após a circuncisão - mas, em geral, essa sensibilidade tende a diminuir com o passar do tempo.

"Eu sempre digo para os rapazes que 'vai ficar mais sensível no começo', porque de repente você não tem mais essa proteção sobre a cabeça do pênis e a sensação vai ser diferente", diz Dorkin, que já realizou mais de mil circuncisões.

"Mas, na grande maioria dos casos, o paciente se ajusta a isso, o cérebro se ajusta a isso."

Alex também contou ter tido disfunção erétil e sensações de queimação e coceira, particularmente na cicatriz do freio (prega de tecido que liga o prepúcio à parte inferior do pênis), que foi removido.

"É uma das zonas mais erógenas, por isso é considerada importante para a função sexual", explica Dorkin.

"O prepúcio, a cabeça do pênis e o freio são áreas muito sensíveis."

"Mas, novamente, quando você faz a circuncisão, muitas vezes, o freio não é preservado, e isso não tem necessariamente um efeito sobre o desempenho e o prazer sexual."

Mas Alex sentia que seu freio era importante.

"Diante da ausência (do freio), posso atestar claramente que é a área mais erogena sensível do pênis e do corpo masculino em geral", escreveu.

"Se alguém amputar o seu clitóris, pode ser que você consiga entender como me sinto."

Ele contou ainda que sentia câimbras e contrações musculares, além de sensações "desconfortáveis" que se estendiam até seu abdômen.

Lesley não sabe dizer se Alex chegou a fazer sexo após a circuncisão.

"Onde havia um órgão sexual, agora eu tenho um órgão adormecido e fracassado", escreveu. "Minha sexualidade foi deixada em frangalhos."

"A natureza é mais sábia - como cortar parte de um tecido saudável pode melhorar o design que a natureza desenvolveu?", questionou.

Pouca informação

Como grande parte das pessoas, Lesley admite que sabia muito pouco a respeito da circuncisão antes da morte do filho.

"Eu não sabia nada, só achava que se tratava de uma cirurgia de rotina", diz ela.

O prepúcio às vezes é menosprezado, sendo classificado como um "excesso inútil de pele", mas Dorkin explica que ele tem uma função.

"Ele oferece um pouco de proteção para a cabeça do pênis. Acredita-se que talvez tenha algum tipo de função imunológica."

As taxas de circuncisão variam muito dependendo do país - e da cultura.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 95% dos homens são circuncidados na Nigéria, mas apenas 8,5% se submeteram ao procedimento no Reino Unido.

A maioria dos homens circuncidados no Reino Unido é de origem muçulmana ou judia, já que a circuncisão é considerada uma parte importante destas religiões.

Por isso, as pessoas que questionam a circuncisão às vezes são acusadas de serem antissemitas ou islamofóbicas, mas Lesley enfatiza que seu filho não era nenhum dos dois.

No Canadá, para onde Alex havia se mudado, estima-se que 32% dos homens sejam circuncidados.

Para Alex, a circuncisão masculina foi normalizada à medida que a maioria das pessoas não questiona a prática, enquanto a mutilação genital feminina e agora é considerada ilegal em muitos países.

Ele acreditava que a circuncisão masculina também deveria ser chamada de "mutilação genital" - visão compartilhada por um movimento anticircuncisão cada vez maior.

"Se eu fosse uma mulher (nas nações ocidentais) isso seria ilegal, o cirurgião seria um criminoso e isso nunca teria sido considerado uma opção pelos médicos", escreveu Alex.

Os defensores da "autonomia genital" acreditam que é errado circuncidar um bebê ou uma criança - seja do sexo masculino ou feminino - porque o paciente não é capaz de dar consentimento.

Esses ativistas consideram a circuncisão como uma questão de direitos humanos.

Após ter vivido 21 anos sem ser circuncidado, Alex acreditava que os homens circuncidados na infância "tragicamente nunca seriam capazes de compreender totalmente o que perderam".

Ele estimava ter sido privado de 75% da sensibilidade do pênis.

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Imagem: Arquivo pessoal

No entanto, as experiências de pacientes circuncidados na vida adulta diferem dramaticamente.

Alguns acham o sexo melhor, uma vez que não sentem mais a dor do prepúcio apertado ou inflamado.

Já outros relatam uma perda significativa de sensibilidade e redução do prazer sexual.

Há também quem diga que, apesar da sensibilidade menor, o prazer sexual continua o mesmo.

Ou seja, enquanto algumas pessoas ficam felizes com a circuncisão, outras, como Alex, se arrependem profundamente.

Sofrendo em silêncio

Alex procurou ajuda médica após o procedimento, assim como assistência psicológica, mas nunca compartilhou seus problemas com a família ou amigos.

"Eu estive com ele durante esses dois anos e estaria mentindo se dissesse que não achei que havia algo errado", desabafa Lesley.

"Eu perguntava: 'Tem alguma coisa te incomodando? Você está bem?' E ele sempre me tranquilizava dizendo que estava."

Lesley, que costumava dar aulas, agora quer ir às escolas para conversar com rapazes sobre a importância de compartilhar seus problemas, mesmo que sejam muito pessoais.

"Todo mundo sabe que os homens não costumam falar sobre os problemas da mesma forma que as mulheres, mas acho que a circuncisão é um tema muito tabu", diz ela.

"Alex era reservado. Ele certamente não teria dito 'tenho um prepúcio apertado e dói muito'. Ele não disse. E eu não sabia."

Dorkin esclarece que a ocorrência de problemas sérios após a circuncisão é rara, mas não impossível.

"Você ouve histórias de horror em que a circuncisão foi mal feita e há danos causados à própria cabeça do pênis", afirma.

"Os cirurgiões, no fim das contas, são humanos e há potencial para erro humano e técnico durante qualquer cirurgia."

Há registros, inclusive, de mortes de adultos e crianças após o procedimento.

"Não sou qualificada para dizer que a circuncisão é sempre ruim, porque não é", diz Lesley.

"Foi certamente no caso do meu filho, e acho que precisamos de mais pesquisas. É preciso analisar os riscos, o que realmente pode dar errado, precisamos estar mais conscientes deles."

Se a circuncisão for necessária, Dorkin adverte que é importante informar os pacientes sobre possíveis complicações.

"Especialmente quando você vai operar alguém que está no fim da adolescência ou início da idade adulta, é uma área muito sensível e importante para a função sexual, então você tem de explicar os riscos para eles."

"Alex disse que não estava ciente de todos os riscos", afirma Lesley. "Se ele estivesse, tenho certeza de que não teria feito a cirurgia."

A organização britânica 15 Square, que tenta educar as pessoas sobre a circuncisão, destaca que Alex não é o primeiro homem a cometer suicídio após ser circuncidado.

"Isso acontece com mais frequência do que as pessoas pensam", diz David Smith, presidente da instituição.

Não há, no entanto, estatísticas disponíveis sobre pacientes que se mataram após o procedimento.

Alex, por exemplo, morreu há mais de um ano, mas sua história não havia sido contada até agora.

Lesley, que costuma ser reservada como o filho, só concordou em compartilhar o caso de Alex porque este foi o último desejo dele antes de morrer.

"Se as informações a seguir puderem beneficiar alguém, isso serviu para um propósito", escreveu ele.

"Não me senti à vontade para levantar a questão quando tive oportunidade, então, se a minha história puder aumentar a conscientização e quebrar esse tabu dentro da sociedade em relação à saúde dos homens, fico feliz em divulgar minhas palavras."

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