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Blog do Dan Josua

O que um jogo de dados revela sobre nós mesmos e a corrupção do país

Dan Josua

08/02/2018 04h20

Crédito: iStock

Às vezes, temos a fantasia de que a corrupção é algo que acontece lá longe, como se estivesse isolada no Palácio da Alvorada. A triste realidade, no entanto, é que os políticos saíram do meio de nós. E na contrapartida: a existência de uma classe política desse tipo parece influenciar a maneira como a população se comporta.

Uma pesquisa bastante interessante, replicada em nada menos do que 29 países, mostra um pouco isso: a corrupção política está diretamente relacionada a pequenas trapaças de todos nós no dia a dia.

Primeiro, os pesquisadores classificaram cada país participante de acordo com o ranking de corrupção estabelecido pelo Banco Mundial. Dessa maneira, podiam ter uma ideia do quão corrupto ele era como um todo. Depois, convidaram os voluntários a entrar em uma sala. Ali, eles tinham de jogar um mesmo dado duas vezes, mas só contar o resultado do primeiro lançamento.

Se o resultado fosse 1, o jogador ganhava determinado prêmio em dinheiro. Se fosse 2, recebia o dobro; se fosse 3, o triplo e assim por diante. Apenas se tirasse 6, ficava sem receber nada. E lembre-se: o resultado do segundo dado não precisava ser revelado aos pesquisadores.

Todo mundo foi informado que não seria filmado nem observado — o que, aliás, era verdade. Cada um dos participantes permaneceu sozinho na sala enquanto jogava os dados e pode escrever o resultado que queria na sua folhinha de papel. Recebeu o prêmio equivalente ao que estava anotado ali e não de acordo com o número que de fato havia tirado, caso tivesse marcado algo diferente.

Acontece que, mesmo sem saber dos lances reais dos dados, por essas mágicas estatísticas, os cientistas conseguiam prever qual seria o resultado médio se todo mundo contasse a verdade. Afinal, a probabilidade de tirar qualquer um dos números em um lançamento era idêntica. Portanto, se todo mundo contasse a verdade, os resultados deveriam se dividir de modo a ter perto de 1/6 de respostas para cada um dos números.

Do mesmo modo, de novo usando de estatística, os pesquisadores podiam perceber se os participantes estavam sendo completamente desonestos. Eles sempre diriam que tiraram cinco no dado, que, no caso, era a mentira mais bem paga.

E, mais legal ainda, se cada participante simplesmente tivesse escolhido o melhor resultado dentre os seus dois lançamentos, também era possível notar um padrão bem claro, que os cientistas costumam chamar de "curva da desonestidade justificada". O que ela significa: temos uma desculpa para nos ajudar a justificar a mentira que contamos ou que escrevemos no papel.

Muitas vezes, quando somos de alguma maneira desonestos, tentamos usar alguma coisa que de fato aconteceu para que não nos sintamos tão mentirosos assim. Ou seja, escolhemos o melhor resultado entre os dois dados e, de alguma maneira, racionalizamos que, como não inventamos um número diferente, isso não seria trapacear.

E o resultado dessa pesquisa curiosa foi o que já, no fundo, podíamos desconfiar: nos países onde há pouca corrupção da classe política, os papéis que os participantes entregaram para os pesquisadores eram muito próximos da curva de distribuição da honestidade total. Já nos países com maior corrupção, o que os participantes relataram era muito mais próximo daquela "curva da desonestidade justificada".

A primeira conclusão fundamental de toda essa história:  viver em um contexto corrupto parece nos corromper um pouco. Talvez seja quase impossível não aprender a trapacear, se crescemos em uma cultura na qual vemos as pessoas lucrarem sistematicamente com sua desonestidade. Se vivemos em um país como o nosso, onde os poderosos parecem impunes em suas grandes trapaças, nos sentimos justificados em nossos pequenos desvios. Não que seja certo, mas é o que sentimos.

Ao mesmo tempo, é impossível separar completamente "os poderosos" do resto da população. A verdade é que somos todos parte do mesmo caldo.

Além disso, é interessante observar que o padrão da desonestidade sempre apresentou uma tendência a ser similar ao da "desonestidade justificada". Isso evidencia como é difícil para a pessoa comum se sentir o vilão. Ou levar uma vida em que ela se sinta desonesta.

Todos nós contamos nossas histórias como se fossemos o mocinho. O vilão é sempre o outro: o ex, a sogra, o chefe…  Talvez –e algumas outras pesquisas sugerem isso–, o que precisamos para ser mais honestos é de pequenos lembretes. Algo que nos impeça de construir uma narrativa na qual trapaceamos de forma justificada.

Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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