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Blog do Luiz Sperry

Todo mundo faz algo incrível, menos você? Deixe de ser seu próprio carrasco

Luiz Sperry

23/04/2018 04h00

Crédito: iStock

"Mas é que se agora, pra fazer sucesso, pra vender disco de protesto, todo mundo tem que reclamar". Apesar de ser antiga, tem mais de 40 anos que foi gravada, a música "Eu também vou reclamar" –eternizada na voz de Raul Seixas– tem um tema totalmente atual. Ao menos em parte.

Sei que parto de um lugar enviesado, já que minha prática de psiquiatra/psicanalista faz com que as pessoas me procurem justamente (mas não somente) para reclamar da vida, e é difícil alguém ir ao médico contar que a vida está ótima e maravilhosa. Inclusive, fico desconfiado quando aparece um desses. Mas o nível de reclamação das pessoas extrapola as paredes do consultório.

Voltando ao paralelo da música do Raul, antes nos anos 1970, a queixa tinha endereço certo, o disco era de protesto. Vivia-se a época mais sinistra da ditadura militar por aqui, o sonho de um mundo diferente tinha acabado e a luz no fim do túnel estava deveras distante. Os desejos eram reprimidos pela dureza da realidade e todo mundo reclamava disso.

Agora a situação é um pouco diferente. A frase imperativa do século 21 é o "Yes, we can!" (Sim, nós podemos!, que foi o slogan da campanha de Obama à presidência dos Estados Unidos). Ou seja: todo mundo parte do princípio de que pode tudo. Somos bombardeados dia e noite com imagens de coisas que deveríamos adquirir, corpos que deveríamos ter, lugares para onde deveríamos ir.

Tem sempre alguém fazendo alguma coisa incrível enquanto você dorme –ou simplesmente está terminando de comer a marmita apressado para voltar ao trabalho. Sempre alguém acorda mais cedo para malhar, sempre alguém se diverte até mais tarde. A sensação que resta frente a isso muitas vezes é de fracasso. A frustração frente a uma realidade que não contempla esse oceano de possibilidades. São dessas frustrações que as pessoas reclamam hoje em dia.

Claro que a vida não é fácil para ninguém, e como temos liberdade de expressão, reclamamos mais na democracia do que se reclamava na ditadura. Mas não é o mundo externo que é o grande carrasco hoje em dia. Ele está dentro das pessoas, que não conseguem lidar com uma demanda que é simplesmente impossível de ser alcançada. Não é à toa que a frase do filósofo Byung Chul-Han cai como uma luva: "o indivíduo se explora e chama isso de realização."

Tem que ter sucesso financeiro, investir, fazer ginástica, trabalhar muito, dormir bem, beber menos e melhor, não fumar, viajar, tirar fotos e mostrar para todo mundo que você está conseguindo chegar lá. Piora bastante se for mulher, pois precisa conquista um corpo que agrade os padrões, ter filhos, preferencialmente por parto natural, amamentar muitos meses, continuar com um corpo espetacular, e por aí vai.

A expressão dessas cobranças é um crescente prefeccionismo que atinge toda a sociedade, principalmente os jovens. Os princípios capitalistas de competição e meritocracia colocam as pessoas em contato com padrões que são simplesmente inalcançáveis. E assim como esse perfeccionismo, aplicado a nós, leva à sensação de fracasso, aplicado aos outros leva também à intolerância. A sociedade se tornou um ambiente hostil onde todos são juízes e réus ao mesmo tempo, o tempo todo.

Não é preciso fazer um grande esforço para perceber que essa onda tem um custo alto em termos de saúde mental. Depressão, ansiedade, transtornos alimentares e suicídio de uma maneira geral estão fortemente associados a essa questão. A pressão constante em busca da perfeição funciona como um gatilho que leva ao surgimento dessas doenças em pessoas que tenham alguma tendência.

A parte ruim da notícia é que reclamar não vai resolver seus problemas. Nelson Rodrigues costumava dizer que a perfeição não existe, somente para "menininha tocadora de piano". Ele tinha razão. O que existe é somente uma fome insaciável que, se não nos atentarmos, acaba por nos consumir a nós mesmos.

 

 

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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