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Blog do Dan Josua

Eu não deveria estar sofrendo por causa disso

Dan Josua

23/11/2017 04h00

Crédito: iStock

Duvido que algum médico já tenha escutado: meu nariz que tomou uma cotovelada deveria parar de doer. Meu joelho ralado deveria parar de sangrar. Ou minha pele queimada não deveria ser tão sensível.

Mas é difícil encontrar um terapeuta que passe uma semana sem escutar a versão psicológica dessas falas.

Eu não deveria estar sofrendo por causa disso. Eu sou sensível demais. Eu não devia me sentir assim.

Feridas físicas, abertas ao público, tornam a empatia fácil. Olhando para um corpo marcado de queimaduras, é difícil não se colocar no lugar de alguém que sinta esse tipo de dor.

Nossas feridas emocionais, por outro lado, são invisíveis. Ocultas. As causas das dores emocionais estão de tal maneira escondidas que a empatia automática que sentimos ao presenciar uma dor visível nos escapa.

Se uma criança com medo do escuro grita assustada, ela frequentemente escuta que deveria deixar de bobeira. Que monstros não existem. Ao invés de sentir o medo do lugar da criança, o adulto pede que ela se sinta como um adulto. Que ela já saiba que não há nada se escondendo embaixo da cama.

O mesmo que vale para a criança, vale para cada um de nós, em diferentes situações cotidianas. São muitos os "deixa de bobagens" da vida. Você teve um dia difícil no trabalho, mas não deveria estar irritado –"você tem sorte de ter um emprego", nos dizem. Frequentemente, no campo emocional, nos falam o equivalente a convidar uma vítima de queimadura a tirar a blusa despreocupada porque, no nosso corpo sem feridas, a roupa sai sem doer.

As pessoas (muitas vezes) querem apagar o sofrimento daqueles que estão mais próximos. Querem que as pessoas que amam não sofram. Dizem para a criança não ter medo do escuro na esperança de que, falando assim, o sofrimento da criança magicamente desapareça. Como se, ao afirmar que não é nada, o escuro automaticamente se tornasse seguro.

A intenção é cuidar e proteger, mas o efeito é paradoxal. Quando ouve "pare de sentir", a criança também aprende que não deveria sentir da maneira como sente.  "Tem alguma coisa de errada na maneira como eu sinto." "Tem alguma coisa de errada comigo."

Se antes sentia apenas medo, agora passa a sentir medo e vergonha. Ou medo e raiva de si mesma. Sente a emoção da emoção. Se, no início, o problema estava no escuro e nos monstros escondidos nas sombras, com o tempo a pessoa passa a sentir que ela mesma é o problema. O errado é como ela se sente e não o mundo que a faz se sentir desse jeito.

Eu não deveria estar sofrendo por causa disso. Sou sensível demais. Eu não devia me sentir assim.

Aos poucos, as causas das feridas emocionais desaparecem. E, com elas, a possibilidade de fazer curativos apropriados.

Pensando assim, um dos segredos de como lidar com nossas emoções se torna um pouco mais simples. É preciso procurar o que é válido nas nossas respostas emocionais. Por exemplo, o que há de válido em uma criança que grita de medo do escuro? Talvez ela tenha acabado de aprender que o mundo é cheio de segredos. Que existem coisas que ela não conhece e não consegue prever. Não sentir medo frente ao aprendizado do imprevisível me pareceria loucura.

No final, é preciso comunicar para a criança que é realmente assustador não poder ter certeza do que existe no escuro. Posso dizer que monstros não existem e posso até mesmo ir olhar de baixo da cama com ela. Mas, no final, a verdade é que ela vai precisar aprender um pedaço disso sozinha. Que é possível viver sem ter certeza. Que dá para esperar o medo ir embora. Esse medo que ela está sentindo é sinal de que está entendendo um pouco mais do mundo. Topar enfrentar esse medo é sinal de que ela está se tornando uma pessoa mais forte. Coragem é sentir medo e seguir mesmo assim: só os tolos não têm medo.

Assim, posso falar para ela algo como "dá medo mesmo não saber o que tem embaixo da cama, posso te falar quantas vezes você precisar que monstros não existem, mas esse medo só vai passar se você topar ir olhar lá embaixo e depois ficar um pouquinho no escuro. Quer que eu vá lá junto com você?".

No final das contas, é fundamental validar a emoção, e ao mesmo tempo incentivar que ela enfrente esse medo. Que ela ao mesmo tempo aceite seus sentimentos e tenha a coragem de mudá-los. Nesse caso, o medo é válido, mas talvez nunca mais topar dormir de luz apagada não seja.

O que vale para a criança no escuro vale para cada um de nós, adultos. É preciso perguntar o que é válido no que estamos sentindo. Deixar a emoção da emoção morrer. Sentir um pouco, para não precisar sentir para sempre. Colocar uma contrapartida àquela voz na nossa cabeça que fica insistindo que não deveríamos nos sentir do jeito que nos sentimos. É importante nos lembrarmos que é natural sofrermos às vezes. Que tudo bem ter medos e inseguranças.

Precisamos lembrar que é possível aprender a conviver com os nossos escuros.

Sobre o autor

Dan Josua é psicólogo, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Fez especialização em Terapia Comportamental e Cognitiva pela USP (Universidade de São Paulo) e tem formação em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, nos Estados Unidos. Atua como pesquisador e professor no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e dá cursos pelo Brasil afora ajudando a difundir a DBT pelo país.

Sobre o blog

É muita loucura por aí. Trânsito, mudanças climáticas, tensões em relacionamentos, violência urbana, maratona de séries intermináveis, spoilers em todos os cantos, obrigação de parecer feliz nas mídias sociais, emoções à flor da pele. O blog foi criado para ser um refúgio de tudo isso. Um momento de calma para você ver como a ciência do comportamento humano pode lhe ajudar a navegar no meio de tanta bagunça.

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