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Blog do Luiz Sperry

Por que Freud atrai haters há mais de um século?

Luiz Sperry

05/03/2018 11h33

Crédito: Associated Press

Saiu recentemente uma resenha sobre uma nova biografia de Freud, "Freud: the Making of an Ilusion". O título dizia "Biografia aponta fraudes de Freud e põe psicanálise em xeque". Fiquei bastante curioso. O que será que teriam descoberto que poderia mudar tudo que sabemos sobre Freud? E, claro, pensei sobre mim mesmo: "Será que passei esses anos todos estudando Freud sem perceber que aquilo tudo era uma grande enganação?".

Mas logo minha inquietação passou. As supostas "bombas" nada mais eram que café requentado. Freud usava cocaína! Todo mundo sabe disso. Freud deu cocaína para os pacientes! Todo mundo sabe disso. Freud tinha um caso com Fliess (médico alemão e colaborador próximo de Freud)! Sério? E tinha um caso com a cunhada! Sério? As supostas fraudes que colocariam a psicanálise em xeque eram uma sequência de velhas notícias –provavelmente, verdadeiras– atacando Freud pessoalmente.

Coloco que é complicado comentar um livro que não li. Ainda não foi lançado aqui e confesso que meu apetite por lê-lo foi diminuindo nos últimos dias. Contento-me, então, em criticar a crítica. O livro em si não é o mais importante, é mais um de uma longa série de livros que criticam a psicanálise. Freud coleciona haters há mais de 100 anos. O que eu quero comentar é o porquê de um monte de gente, que não pertence exatamente ao campo da psicanálise, gastar uma parte importante da sua vida criticando Freud e sua obra.

Eu, pessoalmente, acho Freud brilhante. Seu trabalho foi construído ao longo de mais de 40 anos de pesquisa clínica e teórica. Foi construído e reconstruído por ele mesmo e com a ajuda de diversos colaboradores. Sob certo ponto de vista, o maior crítico de Freud foi ele mesmo. Inúmeras vezes mostrou erros em sua própria teoria e teve que mudá-la para conseguir abarcar dados e fenômenos novos que antes tinham lhe passado batido. O resultado final foi a criação de um novo campo da ciência, a psicanálise, e inúmeros conceitos que são fundamentais ainda hoje: Inconsciente, Ego, Id, Superego, Complexo de Édipo e por aí vai.

Não consigo conceber esses achados como algo senão genial no que se refere ao funcionamento humano. Experimentei os efeitos da psicanálise como paciente nas últimas décadas e já há vários anos como analista. Não posso, senão, agradecer a tudo que a psicanálise e meus analistas fizeram por mim. Humildemente, gostaria que meus pacientes possam ser um dia tão gratos também. Análise tem que servir para mudar a vida das pessoas. Não adianta entrar neurótico e sair neurótico culto.

Por outro lado, isso não significa que a psicanálise e os psicanalistas estejam isentos de crítica.  Eu mesmo faço diversas. Psicanálise é cara e elitista demais. Psicanálise parte de vários conceitos que são culturalmente datados, já que Freud e grande parte de seus discípulos pertencia a um meio cultural branco, burguês, judaico-cristão da virada do século, majoritariamente masculino, eventualmente machista. Freud pertencia a um mundo que não existe mais. Hoje temos questões existenciais que eram outras há 100 anos. Numa era onde a velocidade é tudo ou quase tudo, a psicanálise me parece por vezes antiquada.

Por outro lado, a prática psicanalítica ainda não tem nenhum substituto no sentido de proporcionar autoconhecimento e desenvolver ferramentas emocionais para se enfrentar a vida e viver melhor. Após um século de gente tentando desmerecê-la enquanto ciência, ela continua aí. E acredito que por um bom motivo. A psicanálise tem um proposta, com vários defeitos, com várias limitações, mas é uma proposta clara. Fala de consciente e inconsciente, fala de Édipo, fala de Ego e realidade. É um modelo.

Os outros campos da psicologia não têm um modelo assim. Muito menos a neuropsiquiatria. Com todos os seus avanços nas últimas décadas, a psiquiatria perdeu a capacidade de propor modelos sobre o funcionamento mental e da formação das doenças. No máximo grunhidos como "biológico, genético, neuronal". Pessoalmente, sou um entusiasta das neurociências. Acredito que um dia conseguiremos explicar de qual neurônio, de qual gene, de qual neurotransmissor estamos falando. No momento, ainda não. Então, sugiro prestemos atenção ao que Freud vem dizendo há 120 anos.

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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