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Blog do Luiz Sperry

Apesar de ninguém fazer dívida com traficante por café, bebida também vicia

Luiz Sperry

05/02/2018 04h10

Crédito: Mari Casalecchi/Arte/VivaBem

Dia desses me peguei cantarolando a música "Bastidores", do Chico Buarque. Fiquei na cabeça com aqueles versos "E me tranquei no camarim, tomei o calmante, o excitante, e um bocado de gim". Pensei que já havia falado aqui do gim e dos calmantes, mas não dos excitantes. Corrijo agora essa injustiça, salientando que os excitantes citados respondem na psicofarmacologia pelo nome de estimulantes.

Chamamos estimulantes as substâncias cujo efeito é um aumento de disposição e energia. Várias substâncias podem ser classificadas como estimulantes: cocaína, anfetaminas ou mesmo até mesmo a cafeína. Como dá para perceber logo de cara, são substâncias que causam dependência. Até mesmo a cafeína? Sim, até mesmo. Falo por experiência própria, inclusive. Todo dia quando acordo fico ainda mais lento do que sou até a primeira xícara de café e, se esqueço de tomar, sou lembrado por uma dor de cabeça que só vai passar quando eu satisfizer meu vício.

Certamente, a cafeína não é tão viciante nem tão prejudicial quanto a cocaína ou o ecstasy. Ninguém vai à falência ou faz dívida com traficante por causa de café. O que não quer dizer que não faça mal. Dependendo da quantidade, prejudica enormemente a qualidade do sono, pode aumentar a pressão e frequência cardíaca, desencadear crises de pânico e causar gastrite.

Outro ponto importante, que é coisa nova desse século 21, é esse barato de beber álcool misturado com energéticos que, basicamente, são refrigerantes com altas doses de cafeína. Isso tem mostrado resultados trágicos entre adolescentes. O que é de se esperar, já que a associação de açúcar com a cafeína torna a bebida mais palatável e os efeitos da embriaguez menos perceptíveis –levando a porres homéricos e situações de bastante risco.

Acho interessante pensar sobre a nossa relação com a cafeína. Ela é amada, cultuada e idolatrada por todo mundo ocidental, uma droga familiar. Todos têm na memória lembranças infantis que incluem uma xícara reconfortante de café com leite.

Da mesma maneira que na Bolívia as pessoas mascam há séculos folhas de coca e tomam do chá, sem neuroses. Fazem um uso da coca muito semelhante ao que fazemos do café mas, para nós, soa no mínimo estranho começar o dia com uma pequena dose de cocaína. Justiça seja feita, foram os europeus que inventaram essa história de extrair a cocaína das folhas de coca e aspirá-las pelo nariz em quantidades abundantes até terem uma overdose e morrer.

Outro estimulante muito em uso hoje em dia é o metilfenidato, popularmente conhecido como ritalina. Uma quantidade cada vez maior de pessoas toma metilfenidato sem nenhuma indicação médica, e sim porque se sentem melhores e mais produtivas. Ou mesmo microdoses de alucinógenos, como LSD ou psilocibina (que é a substância alucinógena encontrada em certos tipos de cogumelos).  O que começou como mais um entre tantos modismos na Califórnia já vem sendo estudado no campo da ciência.

Tudo isso para dizer que a relação que se estabelece com as substâncias muda de pessoa para pessoa, de um lugar para o outro e ao longo do tempo. Não faz sentido demonizar ou enaltecer isso ou aquilo. E aproveito para lembrar que o café faz bem para o seu coração. Se você tomar até cinco xícaras por dia. Aprecie com moderação.

 

Sobre o autor

Luiz Sperry é médico psiquiatra formado pela USP em 2003. Adora a cidade de São Paulo, onde nasceu e cresceu. Já trabalhou nos 4 cantos dela, inclusive plantão em pronto-socorro (tipo ER mesmo), Unidade Básica, HC, Emílio Ribas, hospícios e hospitais gerais. Foi professor de psicopatologia na Faculdade Paulista de Serviço Social e hoje em dia trabalha em consultório e supervisiona residentes do HC.

Sobre o blog

Um espaço para falar das coisas psi em interface com o que acontece no dia a dia, trazendo temas da atualidade sem ser bitolado.

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