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Blog da Lúcia Helena

Movimentar a vida após o remédio agir: passo vital para sair da depressão

Lúcia Helena

10/04/2018 04h00

Crédito: Estúdio Miro/ Libbs

A vida real, dizem, começa depois do "e foram felizes para sempre". É no dia seguinte que príncipe e princesa descobrem que terão de rebolar para sustentar a felicidade e até mesmo para reconstruí-la naquelas fases sem a menor dose de encantamento que fazem parte da história de todos nós. Isso também serve bem para a gente pensar na depressão.

Um problema realmente grave, posso lhe dizer, começa depois de a medicação antidepressiva trazer de volta não só o ânimo, mas a clareza. Nos dias seguintes, o indivíduo que, por sorte, deu o primeiro passo buscando tratamento descobre, sem qualquer véu escuro tapando-lhe os olhos,  tudo o que perdeu nos tempos de total desencanto com a vida.

Não faço ideia de como a Organização Mundial de Saúde chegou a essa estimativa, mas ela calcula que os deprimidos afundam em tristeza 9,8% dos seus anos vividos. E, nesse longo hiato, como há perdas! De oportunidades no trabalho, talvez até de emprego. Logo, de dinheiro. Da boa forma, porque as pessoas deprimidas engordam e se tornam flácidas por razões bioquímicas — e não apenas, como alguns deduzem apressadamente,  porque se recusam a caminhar no parque enquanto avançam na geladeira.

Apesar de a ajuda medicamentosa afastar a sensação de sofrimento, não se nota a mesma agilidade física de antes, já que a doença provoca uma lentidão motora e dores pelo corpo. Perdem-se relacionamentos afetivos  e amigos, que se afastaram ou foram afastados. Afinal, se há uma rota que o deprimido faz de olhos fechados é a que o leva ao isolamento social. Nem preciso falar — preciso? — que a autoestima, quando alguém vê o seu passado assim em cacos,  costuma ser outro tesouro perdido.

Há, ainda, uma ruína que, esta sim, é irrecuperável: em cada crise depressiva, a pessoa morre um pouco. Parte dela. Literalmente. Eu me refiro aos neurônios arrasados pelo processo inflamatório que sempre está por trás de uma depressão. 

De tão inflamadas, as células do cérebro vão se matando, no fenômeno que a ciência conhece por apoptose. E aí o mal na massa cinzenta está feito. Ele só aumenta, crise após crise.  O estrago pode se traduzir em um declínio paulatino da capacidade cognitiva. E fato: a prevalência dos mais diversos tipos de demência é muito maior entre deprimidos não tratados do que entre os que receberam tratamento.

O desafio é estancar tanta dor no corpo e na alma.  Mas quem teve uma crise depressiva possui 50% de risco de sofrer outra no futuro. Depois de um segundo episódio, a probalidade de um terceiro beira os 70%. E por aí vai.

A nuvem cinza se propaga. Isto é, se a pessoa não reconstrói a sua vida, ao dar uma erguida de ânimo. No entanto, pouco se fala sobre como evitar novos tombos quando a medicação — e não só ela — dá os primeiros sinais de efeito. Fique sabendo: trata-se  de um dos momentos mais críticos de todo o tratamento. E ele vem depois da ilusão equivalente à do "e foram felizes…".

A psiquiatra paulista Giuliana Cividanes, especialista em doenças afetivas e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo, é direta: "Não adianta tirar o sofrimento do paciente por meio de remédios, se ele ficar sem depressão na sala de casa." Por isso, segundo ela, o objetivo nessa etapa delicada é tornar o indivíduo funcional. Isto é, torná-lo capaz de fazer sua vida… funcionar — tão simples e tão complicado assim. Coragem: mesmo enxergando o que a depressão fez, e até mesmo por isso, é urgente dar um próximo passo.

Próximo Passo, aliás, é o nome de um projeto de impressionante beleza, em muitos sentidos, para o qual a doutora Giuliana deu todo o apoio médico, do começo ao fim. Iniciativa da Libbs Farmacêutica,  ele rendeu um espetáculo de dança no final do ano passado, criado e dirigido pelo admirável coreógrafo Ivaldo Bertazzo, que outras tantas vezes já resgatou a saúde das pessoas pelo movimento. E, agora, Próximo Passo é o tema de um documentário dirigido por Tico Vicente e de uma exposição fotográfica da Miro Estúdio documentando todo esse esforço. Ela está em cartaz no Shopping JK Iguatemi, na capital paulista,  até o próximo dia 21 de abril,  mas viajará por outras cidades brasileiras.

Cerca de 1,2 mil pessoas com histórico de depressão se inscreveram para participar dessa dança. A escuta sensível de Giuliana Cividanes selecionou mais de 120 casos. Seus personagens, então, passaram por provas de aptidão física e pela audição com Bertazzo. Era só o início de quatro meses intensos de ensaios até a noite em que todos pisaram pela primeira vez no palco.

Para a médica psiquiatra, a sacada de montar um espetáculo reúne todos os elementos de um enredo que precisa ser mais bem contado: quem sai do quarto escuro da depressão engolindo comprimidos não pode se dar por satisfeito. Precisa mesmo movimentar o corpo — até para se recuperar do baque físico da doença —, focar em novos objetivos, sejam eles quais forem, com a mesma disciplina da dança e ainda, parte importante da receita,  deve estabelecer vínculos sociais que incentivem a persistência, tais como os laços que surgiram entre os bailarinos.

Hoje, existem 400 milhões de pessoas com depressão pelo mundo. E, segundo um levantamento da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, 10,4% dos brasileiros sabem bem do que estou falando — a nossa prevalência da doença é a maior entre os países em desenvolvimento. Nos últimos 17 anos, presenciamos um aumento de 750% de mortes provocadas por elas, incluindo o suicídio.

Uma possível alavanca para esse quadro — só um exemplo em um mar de hipóteses — é o estresse em alta, essa praga tão contemporânea, que derrama no corpo doses extravagantes  do hormônio cortisol. Bem, em ratos de laboratório, um cortisol que se mantém elevado por longos períodos é capaz de provocar a pane nos neurotransmissores do bem-estar que caracteriza a depressão.

Mas, apesar do enorme número de deprimidos, segundo a doutora Giuliana, muitos escondem (ou tentam esconder) sua aflição. Claro que os casos graves terminam  escancarados pelos sintomas. Mas muitos são escamoteados por anos a fio, até por causa do desconhecimento— e, enquanto isso, perdas e mais perdas, sem contar a inflamação correndo solta, castigando cérebro, artérias do coração, articulações ….

Cansaço? Falta de energia? O médico dá suplementos de vitaminas. Não rende tanto quanto antes? A pessoa  se sente culpa, incompetente e preguiçosa. Só não sente que precisa de ajuda — ou de uma ajuda diferente da que obteve de um profissional não especialista.

Sim, porque aqui, mais um agravante. Se o paciente busca auxílio, muitas vezes faz isso no consultório do ginecologista, do cardiologista… O certo seria procurar um bom psiquiatra, o único especialista capaz de avaliar a ação dos farmácos na delicadíssima química cerebral. E prever efeitos colaterais. O ganho de peso é um deles, já que algumas medicações tornam o metabolismo mais lento, poupando energia a fim de criar as condições para o cérebro voltar a tinir.

Independentemente do período de ajustes, que pode durar mais ou menos conforme cada caso, os comprimidos levam até três semanas para a pessoa sentir os primeiros sinais de melhora. E repito: o maior cuidado, nessa frágil temporada e nos primeiros meses subsequentes, é no sentido de evitar as recaídas.

Até porque, revela Giuliana Cividanes,  nos deprimidos existe uma maior atividade de um agrupamento  de células no sistema límbico — região no meio do cérebro que é responsável por nossas emoções —,  especializados em pensamentos negativos. Sim, existem os neurônios do pessimismo que, em condições normais, só nos ajudariam a ficar mais atentos, feito advogados do diabo. Mas em quem mal saiu da depressão e olhou para trás… Ah, eles exageram. A ideia de derrota é forte.

Por isso, segundo a psiquiatra, os remédios precisam ser acompanhados de terapia sempre. E a receita clássica vale também para o cérebro inflamado do deprimido: alimentação equilibrada, atividade física, boas noites de sono.

Mais, claro, a necessária dose de coragem para dar um próximo passo — seguindo, sem perder o ritmo nas perdas acumuladas com a doença, dando piruetas com as novas oportunidades. Sobretudo, aceitando a dança dos altos e baixos que é esse espetáculo do qual fazemos parte. Quem me conhece de perto já ouviu a frase que repito até para os meus botões: ser feliz é teimosa. Vamos, então, teimar. O para-sempre só existe nos recomeços.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.