Pílula da Felicidade?

Há 30 anos, a chegada do Prozac mudou o tratamento e até mesmo o conceito que temos de depressão

Chloé Pinheiro Colaboração para o VivaBem
Rômolo/VivaBem

Em 1988, chegavam às farmácias norte-americanas as primeiras caixas de Prozac. Foi uma verdadeira revolução no tratamento da depressão que, até então, era tratada com remédios que causavam efeitos colaterais importantes, como sonolência em excesso e até risco cardíaco.

Mais refinado e menos agressivo que seus predecessores, o Prozac foi recebido com muito entusiasmo. Bastava uma pílula de 20 miligramas ao dia para reequilibrar o cérebro e "espantar a tristeza sem fim".

Foi com esse mote que a intensa e bem-sucedida campanha de marketing do lançamento se apoiou. Começava a era das happy pills, ou “pílulas da felicidade”, traduzido do inglês. Com essa promessa, o composto viveu anos de glória.

A popularização levou a um "boom" de prescrições do remédio

A novidade, na época, foi tratada como uma solução mágica para depressão, tristeza e a insatisfação com a vida

Quando sua patente expirou, em 2001, o remédio já havia sido prescrito para 40 milhões de pessoas no mundo. E nos trinta anos de vida de Prozac, novos medicamentos vieram e a fluoxetina, seu princípio ativo, virou mais um entre um mar de antidepressivos --todos com mecanismos de ação semelhantes. Para se ter ideia, eles são a segunda categoria de remédios que mais vende no Brasil, com um faturamento de R$ 3,4 bilhões em 2016, segundo a consultoria IMS Health Brasil.

Wagner Gattaz, psiquiatra que hoje é presidente do Conselho do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, trabalhou com o Prozac na Alemanha durante a década de 1980, quando o medicamento ainda estava em fase de testes. Haviam outros concorrentes pelo posto de primeiro comprimido desenvolvido especificamente para a depressão.

Entravam na disputa os medicamentos inspirados nos tricíclicos --remédios dos anos 1950 usados para tratar, originalmente, a esquizofrenia, e também utilizados para estimular alguns neurotransmissores. A falha entre a comunicação dos neurônios é o caminho clássico para a ação dos antidepressivos comercializados até hoje.

Trabalhei em um dos estudos que foram desenvolvidos antes de a fluoxetina ser lançada. Ela era muito bem tolerada em comparação aos tricíclicos, que engordavam, deixavam a boca seca e turvavam a vista, pois não apresentava nenhum destes efeitos adversos em quem tomava. 

Wagner Gattaz

O psiquiatra ainda conta que, cerca de dois anos antes, um outro remédio com o mesmo princípio do Prozac, ser inibidor seletivo de recaptação da serotonina, foi lançado por uma farmacêutica holandesa. Mas, com a publicidade avassaladora, o Prozac levou a fama de pioneiro.

Com a fama repentina, quem viu a novidade nascendo, como a equipe da qual Gattaz fazia parte, já apostou no seu sucesso. Na época dos testes, os médicos brincavam que era bom comprar ações da farmacêutica Lilly, pois elas dariam um salto. E foi assim mesmo. Se em janeiro de 1988 (quando o medicamento chegou às farmácias) uma ação da empresa valia US$ 3,79, em 1999, dez anos depois do lançamento de seu famoso antidepressivo, cada papel custava cerca de US$ 52 --um aumento de cerca de 1.100%. 

E as aplicações para seu princípio ativo, a fluoxetina, cresceram assim como as cifras neste tempo. Hoje já existem novas classes de medicamentos para atender as mais de 322 milhões de pessoas afetadas pelo transtorno depressivo no mundo --sendo 11,5 milhões no Brasil, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde). 

Como a fluoxetina age no cérebro

Desequilíbrio nos neurotransmissores: causa ou consequência da depressão?

Quando o Prozac foi lançado, a depressão em si passava por uma transformação: deixava de ser uma desordem de origem puramente psicológica para receber uma justificativa química. Ora, se os medicamentos que atuavam na função de neurotransmissores, como os tricíclicos e a serotonina, melhoravam os sintomas, logo a doença seria provocada justamente por uma queda nos níveis desses mensageiros do cérebro.

Esse conceito embasou a chegada de dezenas de cartelas diferentes ao mercado e resultou em uma concepção simplista de que a depressão é uma questão de ter mais ou menos serotonina, dopamina e noradrenalina no cérebro. Embora o desequilíbrio nos neurotransmissores seja um fato inegável na evolução da doença, não dá para saber, ainda, se ele é uma causa ou consequência da depressão, que está muito ligada a fatores genéticos e ambientais, onde entra o estresse, por exemplo.

Tanto que só 50% dos pacientes com depressão severa se beneficia das pílulas existentes, uma mostra de que a teoria do desequilíbrio dificilmente explica tudo.

O remédio me curou, mas tive uma recaída

4 anos do remédio fizeram com que ela se sentisse curada. Mas a cura não é para sempre

Em 2008, Vanessa Pimenta, hoje com 45 anos, era agente comunitária de saúde na Zona Leste de São Paulo, mãe de sete filhos. “De repente, comecei a ter crises de tremedeira e fui à médica, que disse que era ansiedade e receitou a fluoxetina”, conta.

Pouco tempo depois, foi diagnosticada com artrite reumatoide, uma dolorosa condição autoimune. “Me sentia muito triste, desanimada, tinha crises de tremer e chorar compulsivamente.” Procurou o psiquiatra, que explicou que doenças como a dela geralmente eram acompanhas de depressão e, oficialmente diagnosticada, as doses da fluoxetina aumentaram até atingirem quatro comprimidos ao dia.

As linhas na receita também cresceram. Entrou o diazepam, tranquilizante que não raro complementa o tratamento por aliviar a tristeza, insônia e angústia imediatamente, mas causa dependência. A fluoxetina, para ela, funcionou ao ponto de se sentir curada. “Depois de quatro anos, me senti melhor e fui diminuindo as doses, com a orientação do psiquiatra, até que saí do depressivo e fiquei só no diazepam”.

Só que, às vezes, quando os inibidores seletivos de recaptação dos neurotransmissores deixam o cérebro, esse sistema de comunicação entre neurônios volta a falhar. Não é um mecanismo de dependência como os do tarja-preta, mas os sintomas de depressão podem voltar, como foi com Vanessa.

Em 2013, ela e o marido perderam o emprego. A preocupação se transformou novamente em falta de ar, angústia, crise de choro e a sensação de estar em um beco sem saída. Voltou para o antidepressivo, dessa vez a sertralina, por escolha do médico.

Complementou o combate à doença que há anos lhe acompanha com exercícios físicos e terapia, onde aprendeu a “amar e cuidar mais de si do que dos outros”. Coincidentemente, logo depois arrumou um novo trabalho, como agente acompanhante de idosos. O céu clareou e, há oito meses, deixou mais uma vez os antidepressivos.

O Prozac não me tirou da depressão

Mulher relata como o medicamento a deixou com a sensação de estar vendo a própria vida passar "como um filme"

No início dos anos 2000, a jornalista e advogada Renata Aguiar, hoje com 44 anos, vivia de regime, mas continuava acima do peso. Os médicos prescreveram remédios para emagrecer que continham fluoxetina na fórmula --um dos efeitos colaterais do princípio ativo é a redução de apetite. Mesmo assim, a balança não deu trégua.

“Eu estava deprimida, não conseguia perder peso e procurei o psiquiatra, que receitou o Prozac pois poderia ser a depressão e ansiedade que não me deixavam emagrecer”, conta. Só que, em vez de melhorar a situação, Renata primeiro se viu ainda mais deprimida e ansiosa --o que pode acontecer até que a ação do fármaco estabilize, lá pelas três semanas de uso.

Mas, depois disso, as coisas não melhoravam. “O remédio me deixou como se eu estivesse vendo a minha própria vida como um filme, fora da realidade”, relembra. “Não ficava nem feliz, nem triste e acabei engordando mais do que emagrecendo”, completa. Esta apatia, segundo os especialistas, é mais indício de que a depressão não está totalmente controlada do que efeito colateral do medicamento.

Renata parou por conta própria, engordou mais e a luta contra a obesidade começou a ser vencida com a cirurgia de redução de estômago, em 2005. A operação, no entanto, não resolveu o relacionamento conturbado com a comida, embora o tenha impossibilitado. “Eu não conseguia mais comer, mas compulsões são compulsões, então acabei adquirindo outra, a bebida”, conta.

Sem querer entrar em detalhes, Renata revela que procurou ajuda psiquiátrica para tratar a questão da dependência em álcool. E, desta vez, encontrou. Voltou em 2014 e, desde então, perdeu 50 quilos e passou pela paroxetina e depois a bupropiona, comprimidos que também atuam seletivamente nos neurotransmissores. “Com os remédios, controlei minha ansiedade e a perda de sentido na vida que a depressão trazia, o que para mim foi um ganho muito grande.”

Categorias de medicamentos utilizados no tratamento da depressão

  • Inibidores IMAO

    Mais antigos, mais potentes e mais perigosos. Aumentam os níveis de neurotransmissores e são os "avós" dos tricíclicos. Apesar dos efeitos colaterais importantes, ainda são utilizados, pois alguns pacientes só respondem a eles. Não são remédios de primeira linha, geralmente ficam reservados para casos que não responderam aos inibidores seletivos. Compostos desse grupo: tranilcipromina, moclobemida, fenelzina, iproniazida e outros.

  • Tricíclicos

    Categoria considerada um grande passo no avanço do tratamento. Ela atua impedindo a recaptação da noradrenalina, dopamina e da serotonina. Tem eficácia semelhante a dos inibidores seletivos, mas os efeitos colaterais são mais evidentes, por isso é utilizada apenas em casos específicos -- geralmente, quando os inibidores seletivos falharam. Fazem parte da categoria: clomipramina, amitriptilina, nortriptilina e outros.

  • Inibidores seletivos

    Podem tanto inibir a recaptação apenas da serotonina quanto de outros neurotransmissores associados ao bem-estar e à disposição --noradrenalina e dopamina. Há ainda a possibilidade de combinar dois compostos desta mesma categoria: são os chamados inibidores duais. Por conta dos efeitos colaterais mais leves, a categoria costuma ser a primeira escolha dos médicos depois do diagnóstico. Substâncias dessa classe: escitalopram, paroxetina, sertralina, fluoxetina, venlafaxina e outros.

  • Outras categorias

    Não estão encaixados nas categorias anteriores, mas também atuam nas monoaminas --noradrenalina, serotonina e dopamina. Possuem efeito similar aos inibidores seletivos e podem ser utilizados também no início do tratamento. Pessoas com problemas cardíacos devem ser avaliadas antes de utilizar esses medicamentos. Compostos deste grupo: bupropiona, merzapranina, trazodona, duloxetina e outros.

Novas classes de medicamentos

A ciência ainda não resolveu totalmente a equação do que realmente causa depressão, mas já se sabe que há outros compostos químicos envolvidos aqui. Entre eles os hormônios e outros neurotransmissores como o glutamato, importante para o sistema nervoso e ainda intocado pelos tratamentos atuais. Ele é, aliás, uma das principais apostas dos especialistas ouvidos pela reportagem para o futuro do combate à depressão. 

Atualmente, está em fase de testes a esketamina, medicamento derivado da ketamina, tranquilizante veterinário que virou droga recreativa por conta de seus poderes alucinógenos. Ela interfere no metabolismo do glutamato sem dar barato e é aplicada via spray nasal. Nos testes, em questão de horas já se notam efeitos positivos nos sintomas depressivos.

Remédio não resolve problemas da vida

Medicação deve ser acompanhada por mudança no estilo de vida

Apesar de todos os benefícios dos antidepressivos, o remédio ajuda a amenizar os sintomas, mas não resolve de vez o problema.

Este tipo de medicamento não chega a causar dependência física, com sinais de abstinência, quando é retirado. E também não causa tolerância --ou seja, quando a quantidade tomada deixa de fazer efeito e é preciso aumentá-la--, mas os médicos podem fazer ajustes na dosagem se necessário.

Mas, mesmo assim, nada garante que a depressão não dê as caras novamente. Por isso, é comum voltar aos remédios que, aliás, não devem ser estigmatizados como algo negativo. É mais importante viver sem depressão do que sem antidepressivos.

O problema é o uso indiscriminado deles, sem o acompanhamento adequado e a indicação correta, como se fossem capazes de eliminar o sofrimento --que não deveria ser combatido com medicamentos. Tristeza é uma coisa, depressão é outra.

Para quem sofre com ela, são várias as abordagens para melhorar além do remédio: a terapia cognitivo-comportamental, a prática regular de exercícios físicos, meditação e uma vida social ativa, ajudam a manter os neurotransmissores funcionando bem. Mas a depressão não é só culpa deles.

Pelo contrário, faz parte de um complexo quebra-cabeças ainda sendo montado, que envolve outras regiões do cérebro, o nível de substâncias inflamatórias pelo corpo e várias questões fora dele, como o estresse do estilo de vida moderno. O que ajude, talvez, a explicar porque a doença tem se tornado tão crônica.

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