Remédio vivo

Produzidos a partir de células, medicamentos biológicos tratam câncer, doenças autoimunes e até você já usou

Manuela Biz Colaboração para o UOL VivaBem
Erik Souza/UOL

Imagine um medicamento produzido a partir de células vivas geneticamente modificadas dentro de um reator, que vão agir no seu organismo e ajudar a combater um problema de saúde. Falando assim parece até que estamos diante de algo muito novo ou uma coisa de filme de ficção científica, que só vai acontecer no futuro, não é? Longe disso... Em boa parte dos casos, os remédios biológicos são usados para tratar problemas mais graves, mas saiba que eles fazem parte da nossa vida há mais de um século e é quase certo que até você já se beneficiou desse tipo de produto.

O que são os remédios biológicos?

A biotecnologia é responsável por uma variedade grande de remédios biológicos. Entre eles estão hormônios --a insulina e os fatores de crescimento, por exemplo -- anticoagulantes e anticorpos monoclonais. Esses medicamentos são usados para combater desde certos tipos de câncer até doenças virais, inflamatórias ou autoimunes --causadas por células de defesas do corpo que atacam o próprio organismo -- como diabetes, lúpus, psoríase e esclerose múltipla.

"Apesar de hoje esses produtos estarem entre as maiores fontes de inovação da indústria farmacêutica e o avanço em engenharia genética ser enorme, alguns estão no mercado há muito tempo. É o caso das vacinas [que praticamente todo mundo já tomou]", explica Elezer Monte Blanco Lemes, especialista em produção e inovação em saúde pública de Bio-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz.

Os remédios biológicos diferem em quase tudo dos ditos tradicionais. Enquanto os medicamentos sintéticos ("comuns") são uma junção de substâncias químicas, os biológicos contam com células de microrganismos que são inativadas e multiplicadas no reator. Ao receber a dose, dependendo do caso, a pessoa absorve um ser vivo capaz de inativar mecanismos específicos que ocorrem em certas doenças ou estimular seu sistema imunológico a produzir células de defesa. 

Conheça alguns dos medicamentos biológicos

  • Hormônios

    Essa categoria de remédios biológicos tem como objetivo suprir a deficiência de substâncias produzidas pelo organismo. Entre os produtos mais conhecidos estão a insulina, usada no tratamento de pessoas com diabetes, e o hormônio do crescimento --importante para o desenvolvimento do corpo.

  • Anticorpos monoclonais

    São usados no tratamento de doenças autoimunes e tumores. São anticorpos (células de defesa) direcionados a um alvo específico --podem ser considerados um míssil teleguiado, que vai atacar células problemáticas e deixar as saudáveis intactas (diferentemente da quimioterapia, por exemplo).

  • Filgrastima

    Estimula a produção de glóbulos brancos, que diminuem durante a quimioterapia, por exemplo, o que pode gerar graves complicações de saúde. A substância também é indicada no tratamento de pacientes submetidos a um transplante de medula óssea ou com infecções graves. A filgrastima é produzida em cultura de bactéria E. coli.

  • Interferonas

    Proteínas com complexo papel no sistema imune. Entre as interferonas mais importantes estão a alfainterferona, que tem atividade antiviral e é indicada no combate a doenças como hepatites B e C, carcinoma renal, linfoma e leucemia; e a betainterferona, um imunorregulador usado no tratamento da esclerose múltipla.

  • Interleucinas

    Família de mais de 30 substâncias que regulam o sistema imune. A interleucina-2, por exemplo, é indicada para tratar carcinoma de rim e melanoma metastático. Outras interleucinas usadas são a oprelvecina, que estimula a produção de plaquetas e a anakinra, para tratamento de artrite reumatoide.

  • Heparinas

    Essas substâncias têm atividade anticoagulante e são usadas na prevenção de tromboembolismo venoso ou arterial, tratamento de embolia pulmonar, certas formas de angina e infarto agudo do miocárdio. As heparinas são produzidas por uma mucosa extraída do intestino do porco.

Muita pesquisa e alta tecnologia: como é produzido um remédio biológico

O país ainda possui poucos polos de produção de biofármacos, pois trabalhar com material vivo exige um controle de qualidade extremamente rígido, além de muita pesquisa --em média, cada lançamento é estudado por seis anos. 

Diferentemente dos remédios sintéticos, que são produzidos por meio de reações químicas, os biológicos são desenvolvidos a partir da manipulação de DNA. "É preciso analisar a célula e identificar quais genes são responsáveis pela produção de uma enzima ou hormônio. Aí, esse gene é isolado, modificado se preciso e aplicado em um hospedeiro em que vai se reproduzir em série", explica Lemes.

O hospedeiro pode ser um micro-organismo ou um tecido animal. É exatamente esse o processo que permitiu que uma bactéria se tornasse uma "fábrica" de insulina humana em 1982. Assim, pacientes diabéticos não precisam mais consumir insulina de pâncreas bovino ou suíno, eliminando quase totalmente o risco de rejeição ao tratamento --esse ainda é o processo padrão de produção do hormônio, de acordo com a Interfarma - Associação da Industría Farmacêutica de Pesquisa. 

Dúvidas comuns sobre o uso desses medicamentos

  • Como deve ser administrado?

    Assim como os remédios sintéticos, há diferentes formas de aplicar os biofármacos. A mais comum é a injeção --é o caso de hormônios, como a insulina. Esse método permite que o produto caia mais rapidamente na corrente sanguínea. Mas já há remédios biológicos para artrite reumatoide de uso oral. Vale lembrar que as vacinas têm as duas variedades.

  • Seu uso é diário?

    Depende do tratamento. Um paciente com diabetes pode precisar de insulina todo dia. Mas em casos como a psoríase, mesmo os remédios de uso contínuo são ministrados de tempos em tempos no consultório.

  • Pode ser aplicado em casa?

    Novamente, a reposta varia com o tipo da doença e a sua necessidade. Na maior parte das vezes a aplicação é feita por especialista em clínica ou hospital --é assim no tratamento oncológico tradicional ou com remédios biológicos, por exemplo. Mas há os hormônios que, além de serem adquiridos na farmácia, vêem em ferramentas que facilitam a vida do paciente, como as canetas aplicadoras.

  • A medicação exige algum cuidado especial?

    Cada caso é um caso. Alguns produtos biológicos se conservam melhor quando refrigerados --nesse caso, até o transporte precisa ser cuidadoso. Mas há exceções, como a insulina, que passa dias fora do refrigerador sem deterioração. O correto é sempre pedir orientações específicas sobre o seu tratamento ao médico responsável.

Novidades não param de surgir e muitas focam o câncer

Cada vez mais pacientes se beneficiam com os remédios biológicos. Em três anos, o número de registros desse produto pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) mais que dobrou: foram 882 pedidos liberados em 2016, contra 366 em 2014.

A maioria das pesquisas e lançamentos atuais de produtos biológicos se concentra no tratamento de doenças autoimunes e de cânceres --como você viu, já existem monoclonais que identificam e combatem tumores

"A quimioterapia evita a divisão celular tumoral, mas acaba atingindo os tecidos saudáveis do corpo também. Já os biológicos influenciam o sistema imunológico a focar apenas nas estruturas doentes", diz Luana Fiuza, oncologista e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Combate ao Câncer (IBCC).

A capacidade de modificar reações do sistema imunológico também transformou os monoclonais em uma arma contra a rejeição em transplantes.

Um dia vamos usar para uma simples dor de cabeça?

Como é preciso investir muito em engenharia genética para se produzir cada remédio, por enquanto não faz sentido para a indústria focar em medicamentos biológicos para solucionar problemas que já são bem atendidas pela química convencional -- como uma simples dor de cabeça, que você resolve tomando uma aspirina.

Além disso, os biofármacos ainda não dispensam o uso de remédios sintéticos em todos os tratamentos. "Muitas vezes os dois tipos de medicamento são usados em conjunto, como no tratamento de tumores, em que a quimioterapia é associada aos biológicos. Tudo depende do estágio da doença", explica Fiuza. Quem pode contar com os biológicos percebe os benefícios. "Como eles preservam as células saudáveis, os efeitos colaterais são bem menores."

O casamento entre biotecnologia e química também parece a melhor alternativa para combater doenças inflamatórias. "Pode-se dizer que os biofármacos não vieram para substituir os sintéticos, e sim para ampliar o nosso arsenal terapêutico de forma mais precisa, eficiente e segura", acredita Jayme Fogagnolo Cobra, coordenador do Serviço de Reumatologia do Hospital Assunção.  

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