Pense antes de acreditar

Um guia para reconhecer conclusões precipitadas e erradas baseadas em estudos de saúde

O Joio e o Trigo Colaboração para o UOL VivaBem Marcel Lisboa/UOL VivaBem

Cura milagrosa para o câncer. Chocolate que ajuda a emagrecer. Leite que reduz o risco de traumatismo craniano. A eterna polêmica se o ovo faz bem ou mal. Nosso cotidiano está repleto de notícias e artigos sobre saúde. Pudera: aquilo que diz respeito a nosso corpo desperta um grande interesse.

Quanto mais espetacular a notícia, ou quanto mais dialogue com aflições reais, maior a atenção. Por consequência, maior a audiência. Em meio a um cenário vertiginoso que afeta também a ciência, uma verdade parece imutável: cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém.

Conclusões precipitadas sobre evidências científicas podem criar confusão. E, em última instância, colocar em risco a saúde.

A ciência não tem verdades absolutas

A primeira coisa a ter em mente é que a ciência evolui lentamente. Nenhuma cura surge da noite para o dia. Nenhum alimento é capaz de realizar milagres.

"A ciência funciona somando tijolinhos. Mesmo algum avanço muito revolucionário é construído ao longo de anos", resume Marilia Sá Carvalho, co-editora-chefe dos Cadernos de Saúde Pública, uma das principais publicações científicas da área no Brasil.

Além disso, a ciência na área de saúde tem uma hierarquia bem estabelecida para avaliar a qualidade de um artigo científico. Uma andorinha só não faz verão: se apenas um estudo relaciona o consumo de um remédio ou alimento a um desfecho negativo, é preciso ter cuidado com os resultados.

Também é bom não confundir associação com causa-efeito. Um artigo pode dizer que em um determinado período aumentaram as doenças de pele e os relatos de discos voadores, mas não há qualquer mecanismo que aponte os discos voadores como causa dessas doenças.

Se você decidir ler evidências científicas por conta própria, é melhor procurar por revisões sistemáticas, ou seja, por artigos que condensam as evidências disponíveis em torno de um determinado assunto. Se essa revisão incluir uma reanálise dos dados - o jargão científico para isso é "metanálise" - é melhor ainda

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Vacina não causa autismo, mas um estudo causou a confusão

As notícias falsas ou precipitadas sobre vacinas se transformaram num problema de escala global, a ponto de criarem as condições para a volta de doenças que estavam sob controle.

Essa história ganhou outra dimensão com as redes sociais, mas tem raízes no final do século passado, quando a revista Lancet publicou um estudo relacionando vacinas a autismo. O médico Andrew Wakefield, do Reino Unido, analisou os dados de doze crianças que desenvolveram comportamentos autistas e inflamação intestinal. Essas crianças tinham vestígios do vírus do sarampo no corpo, o que levou à hipótese de que a vacina contra o sarampo estivesse conectada a esse problema.

Mais tarde descobriu-se que Wakefield havia registrado a patente de uma vacina que concorreria com a versão testada. Pesquisadores que participaram do experimento disseram que questões básicas foram descartadas para induzir a esse resultado. Ele acabou tendo o registro médico cassado. Mas a resistência às vacinas se tornou mais e mais forte.

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Onde a pesquisa foi publicada?

A qualidade da publicação é algo a tomar em conta. Não é algo definitivo, como mostra o caso da vacina, iniciado na famosa Lancet. Porém, pode ajudar.

"Hoje em dia tem um monte de publicações predadoras: pagou, passou", adverte Marilia Sá Carvalho.

Um indicador inicial de qualidade é ver a que bases de dados as revistas estão indexadas. PubMed, no exterior, e Scielo, no Brasil, são duas boas referências. Lá você pode encontrar as listas de periódicos, os assuntos e as publicações mais recentes.

Os artigos informam a data em que foram submetidos, quando passaram por revisão e quando foram publicados. Intervalos muito rápidos entre submissão e publicação podem ser um indicador de que nem todos os cuidados foram tomados.

Quem está falando sobre o assunto tem domínio?

Outro ponto de atenção é quem fala tem conhecimento específico sobre o tema? Um preparador físico pode ter noções sobre nutrição, mas não é nutricionista. Um médico pode saber muito sobre câncer, mas ter apenas noções sobre Alzheimer (ou o contrário). Tanto no caso de jornalistas como no caso de especialistas, é bom checar se as referências bibliográficas que levaram a determinada conclusão estão claras. E se são numerosas ou se foram baseadas em um único artigo.

Em ciência, as declarações ("médico diz que") estão no pé da hierarquia. A opinião de alguém, isoladamente, não diz nada. A opinião de um grupo começa a ter mais peso. Quando a opinião vira observar a realidade, a conclusão ganha mais relevância.

Olhar para as comparações é também importante. Se um estudo decidir comparar a qualidade nutricional do abacate com a de um biscoito recheado, já se sabe quem sairá vencedor. Uma notícia que fale sobre a eficácia de um medicamento precisa contar se esse medicamento foi comparado aos produtos concorrentes ou a nada.

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Prato feito de falhas é que engorda

No começo de 2019, muita gente se deparou com uma informação bombástica: "Prato feito engorda mais do que fast-food", noticiaram vários jornais, sites e televisões.

A leitura do estudo original levava a outras respostas, ainda que com algum esforço. A pesquisa havia sido publicada pouco antes no BMJ, o antigo British Medical Journal. O desenho favorecia chegar a essa conclusão.

Os autores levaram em conta as calorias totais e não a densidade calórica, que é a razão entre calorias e peso.

Os pontinhos vermelhos são pratos comprados em restaurantes e lanchonetes de fast food. Os azuis, em restaurantes de "sit down", ou seja, para se sentar, também conhecidos como restaurantes de serviço completo.

Então, é previsível que um prato completo com um peso de 640 a 1.300 gramas tenha mais calorias que um croquete ou um pastel. A informação que importa, da densidade calórica, mostrava o que também seria esperado: arroz e feijão têm menos densidade calórica que salgadinhos.

Além de haver selecionado pratos muito pesados, que dificilmente alguém comeria sozinho, os autores do estudo misturaram as categorias.

Havia pratos feitos na categoria de fast- food, puxando a média para baixo, e salgados na categoria de restaurante de serviço completo, puxando a média para cima.

Também foram desconsideradas as dietas, ou seja, o que as pessoas comeram no resto do dia. Alguém que almoce uma coxinha terá fome rapidamente, enquanto alguém que almoçou um prato feito provavelmente passará a tarde com pouca ou nenhuma refeição adicional.

Leite com chocolate melhora desempenho do cérebro?

Um caso vexatório envolveu a Universidade de Maryland, nos Estados Unidos. Em dezembro de 2015, um material de divulgação à mídia falou que o Fifth Quarter Fresh, um novo leite com chocolate com alto teor de proteína, havia ajudado jogadores de futebol americano a melhorar o desempenho cognitivo mesmo depois de sofrer concussões.

Pancadas na cabeça haviam se tornado um motivo de preocupação crescente na prática dessa modalidade esportiva, criando as condições perfeitas para um produto assim.

Jornalistas estranharam a história e foram atrás de entender a situação. Havia muitas falhas:

  • Nenhum estudo publicado.
  • Os dados eram baseados na distribuição aleatória do produto a jogadores de futebol americano no ensino médio.
  • Os responsáveis pela distribuição eram os próprios treinadores, que não haviam passado por qualquer treinamento.
  • Não havia comparação com qualquer outro produto ou substância.

Afinal, concluiu-se que o Fifth Quarter Fresh era só leite desnatado, 40 gramas de açúcar, cacau em pó e vitaminas. Nada que pudesse melhorar o desempenho cognitivo, com ou sem pancadas na cabeça. O apoio e os salários para o desenvolvimento da pesquisa foram pagos pela empresa.

O motivo da pressa? Os resultados precisavam ser lançados em paralelo a um documentário que falaria sobre concussões no futebol americano.

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A quem aquele resultado interessa?

Esse é um ponto importante a observar. A notícia relata quem financiou determinada pesquisa? Embora o debate sobre conflito de interesses esteja longe do consenso no âmbito acadêmico, as principais publicações exigem que os pesquisadores declarem vínculos com empresas privadas. Isso pode ser checado no artigo original, mas ainda não é praxe entre jornalistas.

"Imagine um sinal vermelho sempre que vir um relatório que informe que um único alimento, bebida, suplemento, produto alimentício ou ingrediente causa ou reduz o risco de obesidade, doenças cardíacas, diabetes tipo 2 ou câncer", resume Marion Nestle, professora emérita da Universidade de Nova York, no livro "Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos". Já que estamos falando de conflito de interesses, é bom declarar que participamos da edição desse livro, embora de maneira gratuita, sem receber pagamento.

Ela observa que pesquisas financiadas por instituições públicas tendem a fazer perguntas mais abertas (sobre regimes alimentares, por exemplo), enquanto trabalhos bancados pelo setor privado estão mais direcionados a um objetivo específico (um produto). Nesse caso, muitas vezes o interesse maior é marketing e não ciência. A área de produtos lácteos é particularmente propensa a esses desfechos, mas não é a única.

Em relação a doenças, é esperado que estudos estejam financiados por uma corporação interessada em demonstrar a eficácia de um produto - afinal, ela precisa disso para conseguir a liberação para comercializá-lo. É bom comparar os resultados dessas pesquisas com estudos independentes e checar se há artigos que revisem as evidências científicas em torno desse assunto.

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A pílula do câncer e nosso fake news nacional

Situações desesperadoras são particularmente propícias a conclusões precipitadas. Vira e mexe surgem curas milagrosas para doenças que preocupam a humanidade. Em 2016, ele foi atrás de saber mais sobre a fosfoetanolamina sintética, uma pílula produzida de forma artesanal por um professor da USP desde os anos 1990.

O tratamento conquistou dezenas de adeptos, a ponto de o Congresso Nacional aprovar rapidamente, em 2016, a autorização para o tratamento, que, no entanto, não contava com o aval de qualquer órgão de saúde.

"Quem defendia? Era um professor da USP, aposentado", recorda Marcos Pivetta, editor da Revista Fapesp. "Cria-se uma narrativa. 'Ele foi professor, então, deve saber o que está falando'. Mas, quando vai ver, o que tem efetivamente de publicação como tratamento de câncer?" Havia poucos estudos já publicados e nenhum deles com testes em humanos. A substância continua sendo testada e, até hoje, não há conclusão de que possa ser benéfica ao tratamento.

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Siga os passos do Health News Review para não cair em pegadinha

  • 1

    A história discute adequadamente os custos da intervenção?

  • 2

    A história quantifica adequadamente os benefícios do tratamento?

  • 3

    A história explica/quantifica adequadamente os riscos?

  • 4

    A história parece ter levado em conta a qualidade da evidência?

  • 5

    A história pratica uma espécie de exploração da doença?

  • 6

    A história usa fontes independentes e identifica conflitos de interesses?

  • 7

    A história compara a nova abordagem com aquilo que já existe?

  • 8

    A história esclarece a disponibilidade do tratamento/produto/procedimento?

  • 9

    A história estabelece qual a verdadeira novidade dessa abordagem?

  • 10

    A história parece se basear majoritariamente em material de divulgação?

Na área de nutrição, há um jeito fácil de não cair em pegadinha. O princípio básico de alimentação balanceada permanece notavelmente constante ao longo dos anos: ingestão de uma grande variedade de alimentos frescos ou minimamente processados

Marion Nestle

Chocolate pode fazer bem, mas não emagrece

O chocolate é muito estudado. Por um motivo básico: seria perfeito se um alimento tão associado a prazer pudesse prover benefícios à saúde. Muitas pesquisas depois, esse milagre não se realizou.

"Comer chocolate pode te ajudar a perder peso", dizia um comunicado divulgado à mídia dos Estados Unidos em 2015. A história foi criada pelo jornalista científico John Bohannon, que queria evidenciar a falta de critério na publicação de notícias baseadas em estudos. "Há muito tempo, as pessoas que cobrem esse assunto o têm tratado como fofoca, ecoando qualquer coisa que encontram nos materiais de divulgação à imprensa", declarou.

Bohannon caprichou na pegadinha. Ele de fato criou um estudo, mas propositalmente cheio de lacunas.

  • Primeiro, saiu em uma publicação que não tem qualquer relevância, nem cuidado.
  • Eram apenas 16 pessoas. Ponto de atenção: é cada vez mais comum que startups criem estudos com uma amostragem muito pequena simplesmente para que possam divulgar um determinado produto.
  • Depois, uma dieta de baixo carboidrato somada a 40 gramas de chocolate amargo foi comparada a uma dieta comum - o tipo de comparação desenhada para dar o resultado almejado porque é de esperar que as pessoas emagreçam (mas não por causa do chocolate).

O baixo número de participantes leva a que seja fácil criar distorções nos resultados: qualquer variação total pode ser transformada numa enorme variação percentual e resultados neutros podem ser lidos como positivos. Essa é outra dica importante.

Normalmente, essa manipulação para cima de variações insignificantes se materializa no verbo "poder": um remédio que "pode" ajudar a curar uma doença igualmente "pode não" ajudar. Um alimento que "pode ser bom" para a saúde também "pode não ser".

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