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Nem toda pesquisa sobre alimentos deve ser levada a sério

De acordo com o novo livro de Marion Nestle, o objetivo não declarado da maioria dos estudos patrocinados por empresas é aumentar a lucratividade - Gracia Lam via The New York Times
De acordo com o novo livro de Marion Nestle, o objetivo não declarado da maioria dos estudos patrocinados por empresas é aumentar a lucratividade Imagem: Gracia Lam via The New York Times

Jane E. Brody

Do New York Times

06/11/2018 09h01

Confuso sobre o que comer e beber para garantir sua saúde? Isso não é novidade.

Um exemplo, depois de décadas de pesquisas dando suporte a dietas que reduzissem a quantidade de gorduras saturadas para minimizar o risco de doença cardíaca e derrame, agora foi divulgado um novo estudo que observou 136.384 pessoas em 21 países, no qual diz que o consumo de gorduras totais (leia-se saturadas) em alimentos lácteos está relacionado a um risco menor de mortes causadas por doenças cardiovasculares.

Mas sem dissecar cada estudo incluído nesta meta-análise, não é possível afirmar o que pode estar por trás deste resultado surpreendente e se seria o caso de você, a partir de agora, voltar a colocar chantilly no seu café e leite integral no seu cereal. O estudo pode simplesmente significar que consumir o equivalente a três porções de produtos lácteos por dia é saudável, não necessariamente que a gordura saturada por seja a coisa boa.

O cuidado é a ordem do dia, especialmente depois que um outro novo estudo, este um ensaio experimental clínico, descobriu que três semanas com uma dieta rica em gordura saturada causou maior acúmulo de gordura hepática e resistência a insulina, em comparação a dietas com muito açúcar ou gorduras insaturadas.

Ou talvez você tenha comprado a ideia hype sobre o suco de romã ser um superalimento antioxidante, para descobrir em seguida, a partir de um novo livro, que tal evidência de benefício da bebida à saúde foi financiada por empresas do ramo.

No livro Unsavory Truth: How Food Companies Skew the Science of What We Eat, Marion Nestle, professora emérita de nutrição, estudos alimentares e saúde pública da Universidade de Nova York, ressalta que "as romãs podem até ter grande atividade antioxidante, mas comparado ao que?", ela questionou. Seriam mais saudáveis do que as uvas (que são muito mais baratas)?

A empresa POM Wonderful respondeu: "Comparar os benefícios de saúde do nosso produto com outros sucos não é o principal objetivo do nosso extenso programa de pesquisas". Ao que eu perguntaria: "se você está vendendo 'saúde', por que não seria?"

A resposta, assim como a pesquisa mostra que o interesse não declarado de estudos financiados por empresas é o ponto de partida. "É pesquisa de marketing, não ciência", disse Nestle em uma entrevista. Não importa se o alimento em questão é considerado saudável, como mirtilos silvestres e abacates, ou é carregado de calorias saudáveis em comparação a gorduras, açúcares e amidos refinados.

Observando que a pesquisa nutricional, especialmente a financiada por indústrias, "requer uma interpretação cuidadosa", ela sugere uma abordagem que todos os consumidores sábios deveriam seguir:

"Sempre que vejo estudos reivindicando benefícios para um único alimento, preciso verificar três informações: se os resultados são biologicamente plausíveis; se o estudo teve controle sobre fatores relacionados à alimentação, comportamento ou estilo de vida que poderiam influenciar o resultado; e quem financiou a pesquisa".

Considere os estudos patrocinados pela indústria de refrigerantes, em que a Coca-Cola se esforçou para minar evidências de que sua bebida gaseificada carregada de açúcar contribuiu para a epidemia de obesidade do país. Por exemplo, a empresa financiou um estudo da obesidade infantil que, sem procurar uma possível ligação entre o excesso de peso e o consumo de refrigerantes açucarados, concluiu que a pouca atividade física, o sono inadequado e o tempo em que as crianças passavam na frente da televisão eram os fatores mais significativos para tal quadro. Para fazer com que tais conclusões parecessem válidas, a Coca-Cola alistou cientistas universitários que estavam dispostos a lucrar com a associação à pesquisa.

A questão de "quem financiou" é o cerne do livro de Nestle. Trata-se de uma questão crítica, não apenas no que se refere aos alimentos, mas também a medicamentos, suplementos, regimes ou qualquer outro produto ou serviço que possa – ou não – afetar a saúde dos consumidores.

Cada vez mais, conflitos de interesses reais ou potenciais – fatores que podem influenciar consciente ou inconscientemente os resultados da pesquisa – estão sendo trazidos à atenção do público. Em setembro, o diretor de pesquisa clínica no Memorial Sloan Kettering Cancer Center abandonou seu posto depois de não conseguir explicar os milhões de dólares que recebeu de empresas farmacêuticas cujos medicamentos foram estudados por ele. Uma investigação revelou que ele influenciou positivamente resultados que outros pesquisadores acharam insuficientes.

Em setembro, uma peça na seção de Upshot do The New York Times descreveu ainda um outro tipo de conflito proeminente nos ensaios sobre medicamentos: Nos estudos publicados (a maioria acha pontos negativos), é sempre dado um jeito de colocar os resultados negativos ou insignificantes sob uma luz positiva. O problema é muitas vezes maquiado quando esses resultados de estudos espúrios são citados repetidamente por outros pesquisadores.

"Cinquenta anos de pesquisa demonstraram a influência das empresas farmacêuticas sobre o comportamento dos médicos. Até dar aos médicos canetas e blocos de nota com o nome da marca de algum medicamento impresso pode levar esses profissionais a ignorar uma marca genérica ou concorrente", disse Nestle.

No entanto, Nestle disse que, embora haja milhares de conflitos de interesse envolvendo estudos de drogas e medicamentos angariados pela indústria, ela conseguiu identificar apenas 11 em que haja a influência no resultado das pesquisas sobre alimentos e bebidas em relação à saúde.

Os consumidores podem ser corrompidos por esses resultados, especialmente quando estes advêm de alguma instituição de prestígio ou associação profissional. Nestle diz que essas organizações precisam dar mais atenção aos conflitos de interesse para que não sejam pegos divulgando uma ciência descomprometida.

Ela citou um estudo de 2015 financiado por uma empresa na Universidade de Maryland sobre o produto Fifth Quarter Fresh, uma bebida achocolatada com vitaminas e 42 gramas de açúcar. Embora o estudo não tenha sido revisado ou publicado em alguma revista profissional, um comunicado da imprensa da universidade afirmou que a bebida poderia minimizar os efeitos cerebrais de concussões em jogadores de futebol americano do ensino médio. Punido por falha ética, a universidade teve que devolver quase US$230 mil aos patrocinadores comerciais.

Nestle relata como o marketing de algumas empresas tem se unido a organizações que têm acesso ao público, ou até mesmo quem escreve sobre ciência como eu, para que os resultados das pesquisas tenham crédito como se fossem avaliações imparciais. Mesmo especialistas e conselheiros de saúde para o público em geral podem ser contaminados por influências comerciais.

Existe um conflito inerente, por exemplo, dentro do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que tem dois mandatos potencialmente opostos. O departamento supostamente deve apoiar a produção de todos os tipos de produtos agrícolas --carne, aves e laticínios, assim como frutas e legumes-- e participa junto ao Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos na formulação de diretrizes dietéticas nacionais e requisitos nutricionais para almoços escolares e outros programas de nutrição pública.