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Equilíbrio

Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


'Cuidar do meu irmão com deficiência me fez ver que ele não era doente'

Para Gina, lidar com a morte de seu irmão com necessidades especiais significava estar de luto por ele e pela perda da possibilidade de uma relação mais próxima - Ayumi Takahashi/The New York Times
Para Gina, lidar com a morte de seu irmão com necessidades especiais significava estar de luto por ele e pela perda da possibilidade de uma relação mais próxima Imagem: Ayumi Takahashi/The New York Times

Gina DeMillo Wagner*

Do New York Times

02/08/2018 11h48

Quando meu irmão Alan morreu repentinamente aos 43 anos de idade, recebi mensagens de condolência habituais e algumas incomuns. Um amigo escreveu: "Que bom que esse fardo finalmente foi tirado das suas costas." Outro simplesmente me abraçou e disse: "Tomara que você finalmente tenha paz."

Esses amigos presumiram que a morte do meu irmão traria algum alívio, que perdê-lo ainda jovem poderia ser algum tipo de bênção.

Bem lá no fundo, as mensagens tentavam dar sentido a uma perda que não se encaixava em nenhuma das categorias habituais. Alan não era um irmão típico, nem nossa relação era típica entre irmãos. Meu relacionamento com ele era ambivalente: cheio de amor, medo, empatia, vergonha, gratidão e ressentimento. Por conta disso, a perda foi um pouco diferente e, talvez, mais fácil, acreditavam esses amigos.

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Meu irmão era uma criança de cinco anos no corpo de um homem adulto. Ele nasceu com uma anormalidade genética que leva a atrasos cognitivos, hiperfagia (fome insaciável), fala ininteligível e comportamento que varia inesperadamente do amoroso ao violento.

Foi só depois de completar 30 anos que ele foi diagnosticado com a síndrome de Prader-Willi, deficiência intelectual provocada por um erro genético no cromossomo 15. Minha mãe suspeitava que ele também tinha outros problemas. Ele nasceu de parto pélvico, com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Para ela, Alan pode ter sofrido uma lesão cerebral assim. Segundo minha mãe, ele era um bebê molenga, que não chorava.

Alan exigia supervisão constante. Sozinho, comia até vomitar. Alan comia alimentos achados no lixo. Ele se cortava tentando abrir enlatados com uma faca de cozinha. E provocava incêndios no fogão.

Isso significa que, apesar de eu ser três anos mais jovem, logo o ultrapassei. Eu me tornei a irmã mais velha. A "normal". Era a mim que se referiam ao consolar minha mãe. Pelo menos você tem essa menininha perfeita.

Na década de 1970, ter uma criança deficiente era uma doença e eu era a cura. Posteriormente, meus pais tiveram outra criança típica, meu irmão caçula, Andrew, mas nem isso reduziu seu pesar. Papai foi embora quando eu tinha cinco anos.

Minha mãe nunca se recuperou. Ela sofreu de depressão profunda. Desde muito nova, passei a ajudar o Alan, ou seja, eu também sofria o impacto de seus surtos violentos. Meu irmão nunca entendia por que a irmã mais nova era responsável por ele. Assim, se eu falasse para ele escovar os dentes ou se o visse comendo compulsivamente, reagia me socando e batendo minha cabeça na parede ou me arrastava no chão pelos cabelos. Mais tarde, ao me ver medrosa e sangrando, ele chorava e se desculpava. Meu irmão nunca quis meu machucar. Sua mente simplesmente não sabia controlar o corpo.

Também havia momentos de tranquilidade. Quando minha mãe estava fora, eu punha Alan para dormir, o beijava na testa e o escutava falar dos filmes preferidos até cair no sono. Quando conhecia uma pessoa nova, perguntava que número calçava, o telefone e decorava. Muitas vezes o flagrávamos ligando para os novos amigos, às vezes no meio da noite.

Ele também era uma espécie de encantador de cães. Ao vê-lo embalar um filhote, nunca se pensaria que ele seria capaz de ferir uma pessoa. Talvez tivesse sido um profissional no resgate de animais se fosse capaz. Este era o paradoxo: quando não era violento, Alan era uma das pessoas mais amáveis que conheci.

Quando Alan morreu, não senti alívio. Senti uma tristeza imediata e inequívoca. Lamentei não apenas a perda do meu irmão, mas também a de qualquer possibilidade de uma vida melhor para ele ou de um relacionamento mais próximo entre nós.

O cenário das necessidades especiais mudou bastante desde as décadas de 1970 e 80, quando éramos crianças. Naquela época, havia poucos recursos para atender suas necessidades e era um estigma ter um parente com esse problema. Minha mãe sofria, em parte, por acreditar que estava completamente sozinha.

Hoje em dia, quase uma a cada seis crianças nos Estados Unidos tem dificuldade de desenvolvimento, segundo o Centro para Controle e Prevenção de Doenças. Existem serviços e redes de apoio que simplesmente não existiam quando Alan e eu éramos crianças.

Sempre me perguntei se minha família teria se portado melhor se tivéssemos tido os recursos disponíveis agora. Logo após a morte de Alan, vi que me agarrava a um fiapo de esperança de que ele melhoraria um dia. Eu esperava que houvesse tempo para desenredar as emoções confusas que sentia por ele, que pudéssemos nos curtir como adultos de um jeito que não foi possível quando crianças.

Na melhor das hipóteses, meu relacionamento com ele era tumultuado; assustador na pior. Eu amava meu irmão? Sim, profundamente. Eu fantasiava como a vida seria sem seu problema, sem a constante nuvem escura de medo e preocupação? Sim, desde que me lembro por gente.

Lembro de uma professora do primário dizendo como eu era uma menina de sorte: "Seu irmão é especial. É uma sorte tê-lo. Ele vai lhe ensinar coisas que irmão nenhum seria capaz." Naquela época, essas palavras doíam. Sortuda? Eu me sentia muito azarada por ser irmã do Alan. Eu me sentia pequena e ignorada.

Em retrospecto, sei que a professora estava certa. Alan me ensinou que os humanos são seres vulneráveis, imperfeitos. Vendo como as pessoas se comportavam ao redor do meu irmão, eu compreendia a existência tanto da bondade incrível quanto da crueldade inimaginável no mundo. Graças a Alan, ganhei paciência, empatia, diplomacia, maturidade e compaixão.

Alan era o meu atormentador, mas também meu irmão mais velho. O profundo amor que sentia por ele não apagava sua violência, nem esta excluía o amor. Percebi que ambos podiam existir simultaneamente.

Após ter meus filhos e conhecer outras famílias, passei a ver que, mesmo na melhor das hipóteses, irmãos são rivais, competindo pelo afeto, tempo e aprovação dos pais. O relacionamento com Alan era diferente de todas as formas --mais complicado, mais extremo; nós vivíamos com uma ambivalência presente em muitas famílias. Chorei a morte do meu irmão como qualquer um choraria por um irmão porque, de certa forma, éramos iguais a todos.

*Gina DeMillo Wagner é jornalista e mora no Colorado. Ela está escrevendo um livro de memórias.

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