Narcolepsia causa sono constante: "Fui demitida porque dormi no trabalho"
"Já dormi em diversas situações: no trabalho, na sala de aula e até mesmo em pé, na fila do banco." Durante quase 15 anos, Tacivania Godoy buscou uma resposta para o sono constante, problema que inclusive a prejudicou em diversos empregos.
"Era difícil permanecer mais de três meses em uma empresa. Sentia um sono inexplicável, repentino, e precisava tirar um cochilo no banheiro para conseguir levar o dia. Aí, me pegavam dormindo e eu era demitida", conta a cabeleireira de 32 anos.
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Tacivania sofre desde os 14 anos de narcolepsia, um distúrbio crônico do sono considerado raro, que acomete cerca de 3,3 milhões de pessoas no mundo. A doença tem como sintomas sonolência súbita e incontrolável; alucinações ao adormecer (hipnagógicas) ou ao acordar (hipnopômpicas); paralisia do sono --a pessoa não consegue se mover quando está acordando --; e cataplexia --perda total ou parcial da força muscular durante o dia, que costuma ocorrer em situações de susto ou riso.
O problema da cabeleireira apareceu quando ela trocou o horário na escola e passou a estudar à noite. "Comecei a dormir na sala de aula e achei que era por causa da mudança de período. Então, voltei a estudar de manhã, mas continuei com muito sono, perdi o ânimo para brincar e não conseguia mais ver TV sem cochilar", conta.
Ela faz vários exames para saber o que estava acontecendo. Os médicos acharam que poderia ser anemia, depressão... "Tive que dar um jeito para conseguir viver, porque não tinha diagnóstico. Quando comecei a sofrer ataques de cataplexia, até evitava dar risada para não ficar sem força."
O alívio do diagnóstico
Tacivania atribui a dificuldade de se obter um diagnóstico à falta de informação sobre o distúrbio. “Com 25 anos, eu trabalhava nos Correios e dormia em pé. Aquilo não era normal, mas os médicos só suspeitavam de depressão. É difícil identificar o problema porque as pessoas não o conhecem”. Foi só quando ela estava com 28 anos, após passar por vários médicos diferentes, que um psiquiatra acabou suspeitando de narcolepsia. Após a realização de alguns exames, a doença foi confirmada.
“Eu me via com uma indisposição imensa, que me impossibilitava de sair de casa, levantar do sofá para mudar a TV de canal ou pentear o cabelo. O que melhorou após receber o diagnóstico certo foi meu psicológico. É muito bom saber que você não é um preguiçoso, como as pessoas falam, e sim que tem uma patologia e a culpa do sono não é sua”, relata.
De acordo com a neurologista Andrea Bacelar, presidente da Associação Brasileira do Sono, os exames que auxiliam no diagnóstico são a polissonografia (que avalia o sono noturno), o teste de latências do sono (que estuda o sono diurno) e o exame do líquor, para identificar a quantidade de hipocretina no cérebro. Essa proteína, produzida no hipotálamo, é responsável por regular a vigília, deixando você alerta.
A especialista explica que na narcolepsia tipo 1, que é o caso de Tacivania, a pessoa apresenta todos os sintomas da doença e baixo nível de hipocretina. Já em quadros do tipo 2, o indivíduo não tem a cataplexia, que é um sintoma determinante da narcolepsia, e a taxa de hipocretina pode se manter normal. Por isso, devem ser feitos exames complementares.
A estudante de direito Fernanda Marques, 21 anos, foi diagnosticada há dois anos com narcolepsia tipo 2. Inicialmente, ela obtivera o diagnóstico de hipotireoidismo, e também tratava ansiedade. “Mas não conseguia ser produtiva. Quando comecei a trabalhar, faltava na aula e só conseguia acordar na hora do almoço e ir pro estágio; claramente tinha algo errado”, conta.
A avó de Fernanda brincou com ela um dia, dizendo que tinha certeza que a neta tinha uma daquelas doenças raras. A jovem começou a pesquisar sobre problemas do sono e descobriu a narcolepsia, com a qual se identificou. Então, consultou uma neurologista e realizou os exames, que confirmaram a suspeita.
Para Fernanda, o que mudou após o diagnóstico foi a autoimagem, poder saber o que está sob seu controle e o que não está. “Passei a entender até onde posso ir e o que não é culpa minha. Por exemplo, não deixo um trabalho para a última hora porque sei que não vou conseguir virar a madrugada fazendo.”
Como e por que o problema ocorre
Segundo o psiquiatra Daniel Suzuki, médico do Ambulatório dos Distúrbios do Sono do Hospital das Clínicas, os sintomas da narcolepsia são fruto de um deslocamento do sono REM, que passa a ocorrer de maneira precoce. “Os pacientes chegam no estágio REM mais rapidamente do que o normal, tanto que é comum eles sonharem em cochilos de curta duração”, diz o especialista.
A cataplexia, por exemplo, representa uma intrusão do sono REM quando estamos acordados, ocasionando a perda da força muscular. Durante ataques de cataplexia, Tacivania conta que chegou a cair e se machucar diversas vezes.
A neurologista Andrea Bacelar explica que a narcolepsia possui dois picos de manifestação: na adolescência, entre 15 e 20 anos, e dos 25 aos 30. Sabe-se que os sintomas são provocados pela baixa produção de hipocretina no cérebro, mas a causa específica da doença ainda é desconhecida --especialmente em casos tipo 2, no qual não há necessariamente alteração dessa proteína.
Algumas hipóteses envolvem fatores genéticos e ambientais, mas a teoria que tem ganhado força é que a narcolepsia seria uma doença autoimune, ou seja, os indivíduos com a condição produzem anticorpos que acabam destruindo os neurônios produtores de hipocretina.
Lidando com a doença
A narcolepsia é um distúrbio que não tem cura, mas é possível controlá-lo com remédios. Segundo Suzuki, as medicações utilizadas são psicoestimulantes, que ajudam a manter o indivíduo acordado. Além disso, há drogas para controlar os ataques de cataplexia.
Tacivania e Fernanda dizem que tiveram fortes efeitos colaterais com as medicações costumam ter fortes. A cabeleireira engordou cerca de 10 kg devido ao remédio que tomava para dormir e precisou parar para evitar obesidade, pois já estava com sobrepeso. Já a estudante emagreceu 11 kg e também teve de mudar o tratamento.
Fernanda relata que uma de suas maiores dificuldades é a falta de disposição. “Você tem menos energia para sair de casa, estudar, trabalhar. Isso prejudica a relação com os amigos, além do rendimento escolar e profissional. Um dos processos mais complexos da doença é ter de calcular onde usar cada pedacinho de energia.”
A jovem destaca, ainda, que a pressão da sociedade em relação à produtividade acaba contribuindo para a disseminação do estereótipo de preguiçoso. “Muitas vezes, a pessoa quer fazer algo e não consegue, pois os remédios só impedem que a gente durma durante o dia, mas não resolvem o cansaço excessivo.”
Outro fator que favorece os estereótipos e prejudica os narcolépticos no dia a dia é a falta de conhecimento sobre a doença. Para Tacivania, as pessoas em geral não sabem como ajudar alguém com o problema.
“No caso de um cadeirante, por exemplo, quem está do lado sabe que ele precisa de auxilio. Mas a narcolepsia é uma doença silenciosa, ninguém percebe. No fundo, a gente se sente em uma guerra de um soldado só. É preciso que as pessoas tenham acesso a essas informações, porque medicação nenhuma vai fazer o que uma pessoa que compreende você pode fazer.”
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