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Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Muito videogame pode ser ruim, mas não significa que seja uma doença mental

A OMS fez do vício ao video game uma doença mental, mas muitos especialistas ao menos têm certeza que esse distúrbio de fato existe - Daniel Zender/The New York Times
A OMS fez do vício ao video game uma doença mental, mas muitos especialistas ao menos têm certeza que esse distúrbio de fato existe Imagem: Daniel Zender/The New York Times

Benedict Carey

Do New York Times

04/07/2018 15h06

No mês passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) acrescentou "distúrbio do jogo eletrônico" ao seu manual de diagnósticos psiquiátricos e a reação foi, digamos, atenuada. Quando milhões de adultos trocam ditos espirituosos com Siri ou Alexa, o diagnóstico parece anos atrasado, não é mesmo?

Abaixe o celular e dê uma olhada ao redor: se metade das pessoas o virem caminhando na rua ou tomando ônibus com a cara mergulhada em uma telinha, então não é preciso muito para pensar que uma porcentagem das pessoas, principalmente jovens e homens, se apaixonaram por "Fortnite", "League of Legends" ou "World of Warcraft" e não conseguem desviar a atenção, exceto para pegar um pouco de cereal.

Eles estão presos. Dormem com a cabeça nos teclados. Um amigo do tipo "vamos para o parque respirar ar puro" viria a calhar. Ajuda viria a calhar.

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Contudo, aceitar o distúrbio do jogo pela internet (IGD, na sigla em inglês para Internet Gaming Disorder) como um novo problema mental também tem seus perigos. Muitos psicólogos duvidam que ele exista como um problema isolado. Os critérios de diagnóstico ainda são confusos e o potencial de excesso de diagnóstico é enorme.

O IGD é um estudo de caso sobre o que acontece quando os pesquisadores se convencem de que um hábito ruim se tornou algo diferente: um distúrbio. Os estudos se acumulam e a noção ganha vida própria – uma que pode ou não ser persuasiva para os supostos pacientes.

"A questão é: qual é a diferença entre um hábito ruim e um distúrbio e qual é o limite entre um e outro", pergunta Scott Lilienfeld, professor de Psicologia da Universidade Emory.

"Algumas pessoas, como eu, acreditam que nem sempre existe uma forma confiável de fazer isso. Outros discordam. A questão é que é necessário tomar muito cuidado" para que as pessoas que precisam de ajuda acreditem.

A definição de IGD é difícil de compreender: "Um padrão de comportamento caracterizado pela falta de controle em relação ao jogo, aumento de prioridade dada ao jogar em relação a outras atividades, a ponto de este ter prioridade sobre outros interesses e afazeres diários, e a continuação ou escalada dessa atividade, apesar da ocorrência de consequências negativas."

Enquanto diagnóstico, é um sucesso potencial. Estimativas de sua prevalência – até nove por cento de todos os jogadores – significam que dezenas de milhões de pessoas, principalmente jovens, do mundo inteiro podem ter esse distúrbio mental.

Algumas com certeza têm, quaisquer que sejam as dinâmicas subjacentes.

"Os garotos que consulto realmente têm um problema, e com efeitos desastrosos em muitas partes de suas vidas – desempenho escolar, vida social, estado de ânimo", afirma o dr. Clifford Sussman, psiquiatra de Washington que trata o jogo compulsivo com psicoterapia.

"Não importa muito como a coisa se chama, a questão é lhes dar ferramentas" para controlar o hábito, acrescenta o médico, para melhor integrá-lo a suas vidas.

Muitos outros psiquiatras concordam e dizem ter tido sucesso ao tratar a compulsão. Porém, a Associação Americana de Psicologia, entre outros grupos, é exceção ao diagnóstico.

A associação argumenta que a definição continua vaga demais, e que os problemas de humor na verdade precedem o jogar em excesso e não ao contrário. O novo rótulo reflete um "pânico moral", asseguram os críticos – um temor infundado da nova tecnologia que anos atrás fez pais e especialistas apontarem os dedos para os efeitos mentalmente corrosivos da TV e, antes dela, do rádio.

"Existe alguma verdade no que os partidários dizem", declara Christopher Ferguson, psicólogo da Universidade Stetson, que se mantém cético quanto às muitas doenças atribuídas aos jogos. "Existe algo aí, embora não saibamos o bastante para compreender o caso por completo."

Segundo ele, parte dos estudos científicos publicados até agora não têm sido reconfortantes. Pegue-se, por exemplo, a busca por uma "assinatura" do distúrbio no cérebro.

Em um estudo recente, um grupo de cientistas da China e da Europa pediu que 38 pessoas identificadas como tendo o distúrbio fizessem uma ressonância magnética do cérebro.

Na comparação com colegas com hábitos de jogos menos compulsivos, o grupo identificado "apresentou espessura cortical significativamente reduzida no córtex orbitofrontal lateral esquerdo, lóbulo parietal inferior, cúneo bilateral, giro pré-central e giro médio temporal direito", anunciaram os pesquisadores.

Outro estudo, também usando imagens do cérebro, concluiu que as pessoas com o distúrbio tinham "conectividade reduzida entre a amídala esquerda e os giros frontal médio esquerdo e pré-central".

São várias regiões do cérebro com nomes pomposos, porém as conclusões são todas virtualmente sem sentido, pois ninguém sabe muito bem como elas interagem ou por que o cúneo bilateral de um jogador é mais espesso do que o de outro.

Outro estudo recente se concentrou no tratamento: não um tratamento qualquer, mas com bupropiona, antidepressivo geralmente usado para se parar de fumar. A pesquisa constatou que, após 12 semanas, "os sintomas depressivos, de atenção e de impulsividade melhoraram", bem como a pontuação, de algumas pessoas, em algo chamado Escala da Adição Juvenil à Internet.

Nenhuma palavra a respeito de os participantes do estudo terem aprendido a gerenciar o hábito de jogar de forma duradoura. "A partir do momento em que se decide ser um distúrbio, você começa a procurá-lo no cérebro das pessoas e tenta extirpá-lo, como se fosse um tumor cerebral", diz Lilienfeld. Só que, é claro, não existe tumor neste caso.

Por fim, outro estudo recente sugeriu que uma forma de romper o transe com os jogos é colocar os viciados em telas no lombo de um cavalo. Após sete dias de "atividades e terapias com equinos", um grupo de adolescentes diagnosticado com o distúrbio do jogo eletrônico demonstrou melhoria na "pontuação de ansiedade e fuga", concluiu o estudo.

Montar a cavalo, geralmente com um terapeuta montado ao lado, dando instruções e incentivo, demonstrou algum benefício para pessoas com autismo, lesão cerebral traumática e estresse pós-traumático. Já para os jogadores…

Ainda não se sabe se a inclusão pela OMS do jogo compulsivo em seu manual levará a melhores pesquisas ou a tratamentos padronizados que realmente mudem o comportamento. Por ora, porém, seria difícil culpar alguém muito propenso a usar um joystick por rejeitar a perspectiva de um "distúrbio". Um hábito ruim pode ser ruim. Porém, curá-lo não envolve exames cerebrais, antidepressivos ou apelar a um galope manso para salvar a vida. Os cavalos digitais são muito mais seguros de cavalgar, afinal. E ainda dá para levar uma espada.

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