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Ex-dependentes de heroína atraem milhões de ouvintes com podcast

Dopey Podcast
Imagem: Dopey Podcast

Vicky Baker

24/06/2019 16h38

Quando dois ex-dependentes de heroína começaram um podcast para compartilhar histórias alucinantes sobre drogas, eles não tinham ideia do sucesso - nem da tragédia - que esperava por eles.

Dopey - que significa Drogado, em tradução livre - tem sido descrito como o podcast "que você não ia querer que seus pais ouvissem".
O apresentador do programa está pronto para gravá-lo no apartamento do pai, em Lower East Side, Nova York.

O programa semanal já foi gravado várias vezes na mesa da cozinha desde que foi lançado, em 2016.

Dave - o filho, agora com pouco mais de 40 anos - não tem nada a esconder. Ele compartilha abertamente histórias do próprio passado como viciado em heroína com qualquer um que sintonize.

Seu pai, um professor de ciências chamado Alan, é um fã improvável. Ele lê orgulhoso, todos os dias, as avaliações que o podcast recebe online. "Você deveria dar uma olhada nelas", diz. "Como é que elas são chamadas? Reviews do iPad? Reviews do iPhone?"

Neste mês, o Dopey ultrapassou a marca de dois milhões de downloads. Cerca de 15 mil pessoas sintonizam cada episódio semanal.

A audiência chegou inicialmente em buca de umas boas risadas e de histórias alucinantes, e acabou ficando por ali, formando uma rede de apoio informal dentro e fora dos Estados Unidos.

Demanda por conteúdo

Dave começou o programa com um grande amigo, Chris, que conheceu alguns anos antes na reabilitação.

Os dois ficaram impressionados com a escassez de relatos mais precisos sobre o uso de drogas no mundo. "Era tudo ou super sentimental, ou apresentado de um jeito super denso para invocar simpatia ou tristeza", diz Dave.

Ele passou a procurar programas de TV, filmes e livros com personagens viciados. "Eu queria obter informações sobre a experiência que eu estava vivendo para poder compará-las, ou entender. Como eles conseguiram sair dessa? Por que eles fizeram isso?"

Então, quando Chris cogitou iniciar algum projeto criativo, Dave sugeriu um podcast com abordagem franca sobre drogas.

Nenhum dos dois tinha certeza de que alguém ouviria suas divagações. Eles postergaram o primeiro episódio durante semanas, hesitando publicá-lo.

Quando finalmente foi ao ar, porém, eles identificaram que havia pessoas se deparando com o podcast ao procurarem "podcast de heroína". Aparentemente, havia demanda por esse tipo de conteúdo e os ouvintes começaram a divulgá-lo.

'O objetivo deste podcast é focar nas histórias de guerra' - Chris, episódio um

O primeiro episódio de Dopey foi gravado no apartamento de Dave. Ele e Chris não tinham nenhum equipamento especial. Eles apenas falaram no microfone interno de um laptop aberto, supondo que a experiência fosse acontecer só aquela vez.

Dave estava sóbrio havia quatro meses. Chris já acumulava um ano e meio longe das drogas.

O passado de Dave inclui 15 anos de dependência em heroína, enquanto Chris - que é 10 anos mais novo e ainda na infância, aos 11 anos, já bebia álcool - acabou tomando heroína e metadona na veia.

Dave - o mais confiante da dupla - abria o programa. Ele interrompia e provocava o amigo, deliberadamente, em uma tentativa de demonstrar conexão e criar química.

Chris se mostrava mais inseguro, preocupado com como sua voz soaria. Mas isso não foi empecilho. Ele encontrou um jeito para contar as histórias mais estranhas sem parecer que estava se vangloriando.

No primeiro episódio, Chris contou tranquilamente que roubou fenobarbital - um medicamento para controlar convulsõs - de um veterinário, depois de tentar fingir que seu gato estava tendo convulsões. "Eles me disseram algo como... 'Por favor, preencha aqui essa papelada. Nós podemos ver o seu gato?' Obviamente, eu não tinha gato nenhum comigo."

Ele também conta que uma vez fugiu da reabilitação e a polícia o pegou, mas o soltou na calçada em frente ao centro de tratamento. Então, ele escapou outra vez. "Isso é um trabalho policial amador", disse Dave.

A dinâmica funcionou. Em pouco tempo, eles criaram bordões. Dave terminava cada episódio dizendo: "Fique firme, nação Dopey", enquanto Chris repetia "Toodles", um jeito informal de se despedir, no lugar de adeus, o que Dave odiava. "Por favor, pare de dizer 'toodles'" foi o que os ouvintes escutaram várias vezes no final do podcast, enquanto o som ia baixando.

O público deles logo se estendeu para além dos EUA - para o Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Eles também estavam atraindo amigos e familiares de viciados.

"E ainda tinha todos os 'voyeurs', que adoram ouvir histórias malucas de drogas (dos outros)", diz Dave. "Porque é ilegal, é perigoso, é um tabu... Histórias de drogas são sempre muito divertidas, na maior parte, até você chegar às consequências."

Começaram a chegar cartas e e-mails de fãs estimulando os dois a continuarem. As pessoas enviavam trabalhos artísticos e músicas para eles. Alguns chegaram a tatuar o nome Dopey.

Heroína 2 - Dopey Podcast - Dopey Podcast
Imagem: Dopey Podcast

Apesar do crescente sucesso, no entanto, Dave começou a temer que Chris estivesse perdendo o interesse. Ele estava estudando para um doutorado em psicologia e tinha vários estágios em andamento.

Parecia que não tinha mais tempo ou entusiasmo para o programa.

E então, um dia, Dave de repente se viu sozinho no microfone.

'A pior coisa que poderia acontecer, aconteceu. Chris teve uma recaída e morreu' - Dave, episódio 143

Estas foram as palavras que abriram o podcast em 28 de julho de 2018.

Havia dois anos e meio que o Dopey tinha começado. Dave foi direto, como sempre, mas sua voz estava debilitada. A certa altura, ela ficou levemente fraca.
Chris havia morrido na terça-feira e ele estava gravando apenas dois dias depois.

Dave não tinha certeza se deveria ir adiante ou encerrar o programa por completo, mas achava que devia algum tipo de explicação aos ouvintes.
Ele disse no podcast que não sabia que Chris tinha voltado a usar drogas escondido.

A namorada de Chris, Annie, ficou desconfiada. Ela ligou para Dave na madrugada de terça-feira, perguntando se podia verificar como ele estava.

Dave mandou uma mensagem para ele às 6h30. Chris respondeu às 6h31 da manhã: "Estou bem. Ainda vivo. Nada ótimo. Falo mais tarde".

Às 10h30 da manhã, Dave recebeu uma ligação de Annie dizendo que havia encontrado ele morto. Chris havia tomado uma mistura de drogas e ficou com uma agulha enfiada no braço depois de injetar fentanil.

Ele vinha comprando o produto na chamada dark web. Também tinha comprado urina "limpa" para trapacear em exames toxicológicos.

Dave ficou atordoado quando ouviu a notícia. Pouco mais de um mês antes, um de seus melhores amigos, Todd, também havia morrido. Todd era a única exceção à regra do Dopey de que você não poderia aparecer no programa se estivesse usando drogas. Ele era um convidado quase regular.

Overdose

No final das contas, foi um pacote de heroína de 10 dólares, junto de uma quantidade letal de fentanil, que matou Todd, segundo Dave.

O fentanil - a droga que está no centro da crise de opióides nos Estados Unidos - é um analgésico sintético, considerado entre 50 e 100 vezes mais forte que a morfina. Ele inundou o mercado de drogas, com grande parte chegando à internet a partir de fornecedores da China.

Dave diz que, em um ano, cinco grandes figuras da comunidade Dopey morreram com o uso de fentanil. Eles também perderam um estagiário, Andrew; o cara que montou sua página no Facebook, Dave; e um ouvinte, Troy, um dos primeiros a escrever para eles.

"Eu usei heroína durante 15 anos e não conhecia ninguém que morreu", diz Dave. "Essa é a minha experiência. Tenho certeza de que há outras pessoas que tiveram uma tonelada de amigos que morreram de overdose de heroína. Mas o fentanil ficou acessível e agora você tem mortes por todo lado."

Seguindo em frente

Faz quase um ano que Chris morreu e Dave nunca perdeu um programa. No começo, ele temia que os ouvintes não continuassem acompanhando. "Eles amavam Chris", diz ele. "Ele era gente boa demais. Eles gostavam mais dele do que de mim."

Dave se lembra de ter recebido uma série de e-mails furiosos de um fã, que reclamava que o programa havia deixado de lado as brincadeiras sobre drogas que fazia de vez em quando. "E eu ficava tipo, 'escute cara, se dois dos seus melhores amigos morressem de overdose..."

No entanto, esse tipo de reação negativa foi rara. A maioria do público encheu Dave de apoio.

Mas ele sente que tem de continuar com o programa? É um dever para ele?

"Não", enfatiza ele. "Eu faço o programa porque adoro fazer. Eu adoro tudo relacionado a ele."

No entanto, a carga de trabalho ficou muito maior. Não só porque ele agora apresenta sozinho, mas também porque o público cresceu demais e ele quer manter o conteúdo interessante.

O programa sempre teve convidados, mas recentemente incluiu nomes famosos, incluindo a atriz Jamie Lee Curtis e o ex-baterista do Guns N'Roses, Steven Adler.
Dave trabalha diariamente, há 11 anos, como garçom em um dos mais famosos restaurantes judaicos de Nova York, o Katz's Delicatessen.

Às 3h da tarde de um dia útil, o lugar está lotado. O estabelecimento de 131 anos é famoso por seus sanduíches enormes de pastrami.

É também onde foi filmada uma cena famosa do filme Harry & Sally - Feitos um Para o Outro, de 1989 - onde a personagem da atriz Meg Ryan finge ter um orgasmo.

Heroína 3 - Dopey Podcast - Dopey Podcast
Imagem: Dopey Podcast

Dave é mais do que um garçom aqui. Ele também faz as redes sociais do restaurante e administra o serviço de buffet externo. "Ei, Fanny! Fanny!" diz ele chamando uma colega que passa. "Há quanto tempo você me conhece? O que você acha do programa?"

"Ele é meu filho judeu", me diz ela. Seu sotaque equatoriano incorporou o jeito de falar nova-iorquino. "O programa ajudou muito a ele, e eu acho que é muito útil para outras pessoas que tenham problemas parecidos. E finalmente, graças a Deus, ele parou [com as drogas]."

O gerente do restaurante, Charles de La Cruz, é outro colega de longa data, que se lembra de quando Dave trabalhou no restaurante durante uma recaída. "Era uma estrada escura, era sombrio", diz ele. "Mas agora ele está usando suas experiências para ajudar outras pessoas. Eu acho incrível."

Dave ressalta, repetidas vezes, que não faz o Dopey para ajudar as pessoas. Ele faz porque quer entreter. Mas o fato de ser entretenimento parece estar ajudando as pessoas.

Uma das pessoas que dizem que o Dopey tem ajudado está em Londres, na Inglaterra.

Ele prefere não revelar o nome verdadeiro. No Twitter, se apresenta como Secret Drug Addict (@scrtdrugaddict) e diz que entrou fundo no mundo das drogas quando trabalhou para a banda Oasis nos anos 90.

"O que eu adoro ver de verdade é esse grupo de lunáticos se conectando através das redes sociais e se apoiando, rindo e se ajudando para enfrentar mais um dia sem usar drogas", diz ele. "Eu queria que já existisse algo assim para eu participar quando parei de usar drogas em 2007."

'A Nação Dopey é incrível' - pai de Dave, episódio 191

De volta ao apartamento de seu pai, Dave está desesperadamente tentando começar o episódio mais recente.

Ele tem pouco tempo e precisa acelerar porque, junto com a parceira, Linda, precisa substituir a babá. Eles têm dois filhos juntos - o que é uma das razões pelas quais tenta manter algum grau de anonimato.

Heroína 4 - Dopey Podcast - Dopey Podcast
Imagem: Dopey Podcast

O formato do programa evoluiu. O conceito, diz ele, é que, se houver um convidado na primeira parte, a segunda deve ser como "voltar para casa", como quando você é jovem e conta as histórias da noite anterior.

O episódio daquela gravação tem um foco familiar, apresentando tanto seu pai quanto Linda. Alan é muito falante e parece confortável.

Ele se lembra do pior momento que viveu: o dia em que teve de limpar o apartamento de Dave quando ele foi levado para a reabilitação. O filho havia rabiscado as palavras "me ajude" nas paredes.

"Você se lembra de ter escrito isso?" pergunta Linda. Ela se envolveu com algumas drogas antes virar terapeuta, e parece em grande medida não se abalar, mas, com isso, também fica surpresa.

"Não, isso é assustador", responde ele, antes de fazer uma transição rápida para uma história sobre o peixe de estimação que tinha na época. A comédia, disse ele antes, é sempre o outro lado das coisas muito trágicas.

É impressionante quanto apoio Dave agora tem na vida. Seu pai, sua parceira, seus colegas.

O Dopey alcança muita gente que não tem isso. "O Dopey não é uma cura", disse ele mais cedo. "Alguém me disse que eles (os ouvintes) pensam nele como um complemento dos 12 passos [o programa de reabilitação]. Eu vejo como um programa de entrevistas para viciados, para fazer companhia a eles e fazê-los se sentirem menos sozinhos."

No ar, Alan diz que é um "milagre" que o filho tenha se livrado das drogas. "Ele é chato demais, mas eu amo ele", acrescenta.
Então, depois de quase duas horas de conversa improvisada, o episódio 191 acaba. Dave se desconecta até o próximo. "Nação Dopey, fique firme. E toodles por Chris."