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Dante Senra

Tecnologia trouxe avanços à medicina, mas pode afastar médico e paciente

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

18/05/2019 04h00

Estabelecer conexões rápidas, eficientes e saudáveis sempre foi um anseio da espécie humana, poupando tempo, ampliando relações e consequentemente conhecimentos. Assim, quase sem percebermos a tecnologia invadiu nossas vidas sem pedir licença ou permissão e não se adaptar a ela significa padecer na solidão da ignorância e do ostracismo. Portanto, esse texto não se trata de aprender a encontrar refúgio da tempestade chamada era digital, mas aprender a dançar na chuva.

Impossível negar a contribuição da tecnologia para a medicina, inclusive sua responsabilidade por muitos dos anos que foram acrescidos as nossas vidas. Podemos graças a ela, seguramente dizer que vivemos um momento sem precedentes na medicina. Há um grande volume de informações médicas em formato digital, laudos, dados demográficos, exames de laboratório, de imagem e até cirurgias robóticas. Muitas vezes, enxergamos em exames de imagem melhor que na própria cirurgia.

Ela nos proporciona diagnósticos precoces e tratamentos mais assertivos. Por exemplo, em 2018, excelentes resultados levaram a agência regulatória americana FDA (sigla para Food and Drug Administration, que age de forma semelhante à Anvisa no Brasil) a aprovar, de forma inédita, um equipamento que é capaz de detectar doença na retina associada à diabetes, sem a necessidade de validar o laudo por um médico. O equipamento faz a detecção de doenças da retina em diabéticos apenas pela imagem, de forma automática. Essa é uma ótima ferramenta de triagem e detecção precoce da doença.

Outros exemplo são o prontuário eletrônico dos pacientes que permite acesso a seus dados em qualquer local do planeta e o monitoramento remoto dos pacientes. Com apoio de inteligência artificial conseguimos automatizar processos dando ao profissional de saúde mais tempo para cuidar dos seus pacientes. Assim, fica inegável a importância da tecnologia na medicina.

Mas que pena, temos um outro lado...

Inegável também que todo esse aparato tem um altíssimo custo e que vivemos em um país com desigualdades sociais agressivas a quem tem mínima sensibilidade. Que milhões de brasileiros são vítimas de profunda negligência assistencial. Que em decorrência do aumento dos preços, da alta do desemprego ou do endividamento familiar, não puderam arcar com as mensalidades, e quase 3 milhões de brasileiros tiveram de abrir mão de convênios médicos nos últimos dois anos e voltaram a depender do SUS (Sistema Único de Saúde) além de quase 2 milhões que diminuíram a categoria de seus planos, tendo acesso a menos serviços.

Uma pesquisa feita pelo SPC Brasil (Serviço de Proteção ao Crédito) e pela CNDL (Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas), divulgada pela Agência Brasil, mostra que 69,7% dos brasileiros não possuem plano de saúde particular --seja individual ou empresarial.

Segundo o levantamento, esse percentual é ainda maior entre as pessoas das classes C, D e E, atingindo 77%.

Não é novidade que faltam médicos e remédios no SUS e no sistema particular de saúde, a mensalidade é alta e a cobertura para diversas doenças e exames depende do contrato acordado.

Provavelmente em uma tentativa de amenizar tamanho problema e reduzir o estrangulamento no sistema causado pela grande demanda, ocasionada pela migração de pacientes em busca de tratamento, em fevereiro deste ano fomos surpreendidos por uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) permitindo médicos a realizarem consultas online, telecirurgias, telediagnóstico e outras formas de atendimento a distância.

Após o questionamento e solicitação de novas etapas de discussão de vários Conselhos Regionais de Medicina dentre eles de São Paulo, da Bahia, Rio, Piauí e Rio Grande do Sul a medida foi revogada no dia 22 do mesmo mês.

Sob este fato cabe ressaltar

A partir da promulgação da Constituição Federal em 1988 e, em especial, com a criação do SUS

, através da Lei Orgânica 8.080/90, a saúde passou a ser um direito de todos e um dever do Estado. Nesse sentido, dentre os princípios do SUS destacam-se: a universalidade de acesso; a integralidade da assistência, incluindo todas as ações necessárias à promoção, à prevenção, ao tratamento e à reabilitação; a igualdade na assistência à saúde (equidade); a participação da comunidade; e a descentralização político-administrativa.

Não conseguindo assegurar assistência de saúde minimamente digna se tenta soluções mágicas, tampões, sob o pressuposto de que qualquer coisa é melhor que nada.

Mesmo para uma minoria que tenha acesso ao computador e internet, como se pode aceitar uma consulta medica onde seus fundamentos como identificação, história clinica, anamnese e exame físico ficam pela metade? Ainda que a primeira consulta fosse presencial, como exigia a resolução, quem pode aceitar uma consulta e seguimento de seu tratamento abrindo mão da maior ferramenta tecnológica que a medicina dispõe, que é a mão e o toque do medico?

A vida é feita de rituais, amigos. Quando nascemos, a cada aniversário, batismo, casamento e até nosso funeral é um ritual. A consulta médica também o é. O paciente espera que o medico o ouça, avalie seus exames e em seguida lhe examine detalhadamente, com auscuta, palpação e percussão de seus órgãos. Não espera e, com razão, não se satisfaz com menos que isso.

A tecnologia afastou as pessoas. Por avaliação inadequada de prioridades olha-se exames, ouve-se pouco e pior, examina-se pouco.
Por favor, senhores do Conselho. Não referendem esse comportamento, porque se os fins justificam os meios vamos eleger o Thanos como o herói numero 1 do Universo.